1 Convicções de luxo
A expressão “luxury beliefs” foi cunhada por Rob Henderson num artigo de 2019 e desenvolvida no seu recente livro de memórias, ainda sem tradução entre nós: Troubled: A Memoir of Foster Care, Family, and Social Class. A dimensão biográfica não é despicienda: Henderson passou a infância a saltar de casa de acolhimento em casa de acolhimento e apenas com muito esforço e sorte foi admitido na Yale University. Foi nesse contexto universitário de elite que amadureceu a ideia de “luxury beliefs”.
Para Henderson, as convicções de luxo ocupam hoje o lugar que era ocupado pelos bens de luxo para distinguir a elite das restantes classes sociais – uma mudança que é particularmente notória nas novas gerações. Quando chegou a Yale, em setembro de 2015, Henderson ficou surpreendido com o facto de os seus colegas se vestirem como estudantes “normais” e evitarem demonstrar a sua condição social excecional – confirmando os diagnósticos das últimas duas décadas que revelam que as novas gerações tendem a desprezar mais a posse de bens materiais, a valorizar mais as experiências e a considerar que é moralmente correto estar contra o capitalismo. No final de outubro desse ano, Henderson começou a perceber que os seus colegas podiam não exibir bens de luxo, mas ostentavam com orgulho convicções de luxo.
Os acontecimentos desse outono, ligados à chamada polémica de Halloween (que descrevi aqui), fizeram com que Henderson se confrontasse não só com uma série de palavras que desconhecia – privilégio branco, apropriação cultural, heteronormatividade –, como também com a caricatural ideia de que palavras escritas num e-mail que apelava à autonomia dos estudantes provocavam dor e trauma:
Nos anos seguintes, Henderson foi refletindo sobre como estes jovens usavam estas ideias e um certo vocabulário para sinalizar o seu estatuto social – é esse o sentido de “convicções de luxo”.
2 O povo é que paga
A expressão “luxury belief” pode, na verdade, ser entendida num duplo sentido e é esse duplo sentido que a torna especialmente relevante para interpretar o que está a acontecer nas sociedades ocidentais. Analisemos o primeiro desses sentidos, que decorre da sua definição como
“ideias e opiniões que conferem estatuto às elites que as proferem sem que estas sofram as suas consequências negativas, que recaem quase exclusivamente sobre as classes mais desfavorecidas”.
Um dos exemplos que Henderson refere com mais regularidade é a reivindicação “defund the police”, popularizada em 2020 e sobre a qual nos debruçamos recentemente: a ideia de que o financiamento da polícia deve ser reduzido parece muito progressista quando colocada nos cartazes dos estudantes das universidades de elite norte-americanas – mas, na prática, a implementação dessa política teve péssimas consequências para as classes mais desfavorecidas (é mesmo altamente desaprovada junto dessas classes). “Defund the police” é, então, uma típica convicção de luxo naquele sentido que a língua portuguesa expressa tão bem quando dizemos que essas pessoas se podem dar ao luxo de defender essas ideias – afinal, não serão afetadas por elas, não terão de suportar o custo dessas políticas.
Outra convicção de luxo identificada por Henderson é a ideia de que a “religião é irracional e prejudicial”, quando, na verdade,
“os locais de culto são muitas vezes essenciais para o tecido social das comunidades pobres. Denegrir a importância da religião prejudica os pobres. Embora as pessoas abastadas encontrem muitas vezes significado no seu trabalho, a maioria dos norte-americanos não se dá ao luxo de ter uma “profissão”. Têm empregos. Pegam e largam a horas certas. Sem uma família ou uma comunidade para cuidar, esse trabalho pode parecer sem sentido.”
O mesmo raciocínio deve ser aplicado à ideia, muito popular nos Estados Unidos, de “fat-shaming”, à defesa da legalização das drogas, à crença no privilégio branco e à convicção de que o mérito é muito menos relevante do que forças sociais aleatórias, como a sorte (mais sobre isto em breve).
(No seu artigo, Henderson explica o argumento a partir da instituição familiar, mas como a questão da família merece um artigo próprio ficará para um texto futuro.)
Nesta dimensão, a ideia de “convicções de luxo” pode ser útil para retratar uma certa hipocrisia, muito recorrente na política, que se verifica quando os atores políticos defendem medidas que afetarão negativamente as classes a que eles não pertencem. E se isto vos faz lembrar a posição de certas pessoas que, entre nós, defenderam o fim dos contratos de associação enquanto os seus filhos andavam em escolas privadas, não é por acaso. Trata-se tipicamente de uma convicção de luxo.
O cientista político Yascha Mounk considera, nessa medida, que o conceito deve ser libertado do contexto de lutas culturais norte-americano, para ser aplicado com mais proveito como chamada de atenção para que os atores políticos estejam mais conscientes das consequências das suas propostas, como, por exemplo, quando os ambientalistas ocidentais defendem que as nações africanas não devem cultivar alimentos geneticamente modificados ou as elites económicas de direita recusam que o estado deva ser responsável pelos cuidados médicos dos seus cidadãos.
3 A política das elites
Contudo, ao procurar retirar a dimensão moral que está implícita na expressão de Henderson, parece-me que Mounk afasta o segundo sentido daquela ideia e que é especialmente rico para compreender aquilo que se tem vindo a designar como “the great divide”.
“A grande divisão” é, na verdade, essencial para compreender as tendências de voto da última década nos países ocidentais e as transformações a que, com toda a certeza, continuaremos a assistir nos próximos anos. No Reino Unido, David Goodhart consagrou esta divisão entre nowheres (que não são de lado algum, i.e., se veem como cidadãos do mundo) e somewheres (aqueles, geralmente sem estudos universitários, que se veem como enraizados numa comunidade) em The Road to Somewhere: The Populist Revolt and the Future of Politics. Já no contexto francês, os termos utilizados remetem geralmente para a oposição entre “globalistas” (ou cosmopolitas) e “identitários” (ou nacionalistas). Estas mudanças resultam de a luta política se ter transformado em luta cultural, fazendo com que praticamente desaparecesse a antiga correspondência entre esquerda e classes trabalhadoras ou economicamente mais frágeis, substituídas por identidades minoritárias e intelectualmente construídas.
Ora, a história desta grande divisão coloca-nos precisamente no contexto universitário e no modo como a expressão “convicções de luxo” remete, também, para o sentido de “convicções que só alguns se podem dar ao luxo de pagar”. De facto, estas ideias que tomam forma num vocabulário específico foram criadas nas universidades de topo norte-americanas e ensinadas como uma espécie de acesso privilegiado à Verdade que a maioria da população – ignorante – desconhece. Essa maioria corresponde aos deploráveis, os que têm ideias erradas, os que se expressam inaceitavelmente, os que acreditam em teorias da conspiração ou fake news e que precisam de ser ensinados a pensar adequadamente, a expressar-se adequadamente e, em particular, a votar adequadamente.
Como o comportamento humano é essencialmente mimético, e tendemos, em particular, a imitar o comportamento das elites, estas convicções de luxo espalharam-se das academias de elite para as restantes universidades, e daí para as elites culturais e os meios de comunicação social, fechando-os numa bolha social e cultural e criando a grande divisão. Como diz Henderson,
“Veja-se o vocabulário. O típico norte-americano da classe trabalhadora não saberia dizer o que significa “heteronormativo” ou “cisgénero”. Mas se visitarmos uma universidade de elite, encontraremos muitas pessoas ricas que nos explicarão com todo o gosto. Quando alguém usa a expressão ‘apropriação cultural’, o que está realmente a dizer é: ‘Fui educado numa universidade de topo’. Só os ricos se podem dar ao luxo de aprender vocabulário estranho, porque as pessoas comuns têm problemas reais com que se preocupar.”
Esse estatuto superior materializa-se, então, numa linguagem própria e que precisa de ser renovada regularmente (tal como as peças de vestuário se submetem à dura lógica da moda). As palavras vão mudando, as ideias vão-se renovando e a pressão sobre os pares é mantida:
“É possível que os brancos abastados não concordem sempre com as suas próprias convicções de luxo, ou, pelo menos, tenham dúvidas. Talvez não gostem do casaco de peles ideológico que estão a usar. Mas se os seus pares os castigarem por não o usarem sempre, nunca mais sairão de casa sem ele.”
Foram estas ideias que se infiltraram no Partido Democrata e que alteraram o panorama eleitoral nos Estados Unidos, tornando a próxima eleição tão disputada. Os contributos da dupla John Judis e Ruy Teixeira são, nesse sentido, muito úteis. Em 2002, estes autores publicaram um popular livro, The Emerging Democratic Majority, que se veio a revelar pouco preditivo, pelo que, no ano passado, tentaram explicar o que falhou. Em Where Have All the Democrats Gone?, os autores defendem que não só os democratas se tornaram reféns das elites tecnológicas, como, sobretudo, foram tomados por um radicalismo cultural que afastou o partido das preocupações das pessoas comuns, que eram o seu eleitorado base. Acima de tudo,
“Os democratas precisam de se olhar ao espelho e examinar até que ponto os seus próprios fracassos contribuíram para a ascensão das tendências mais tóxicas da direita.”
Neste sentido, há poucas dúvidas quanto à pergunta que, por vezes, desponta no podcast América Dividida: sim, o Partido Democrata tornou-se um partido de elites, muito mais preocupado com os meninos das universidades que protestam do que com aqueles a quem cabe limpar os campi no final dos protestos.