Confesso que senti um calafrio quando o ouvi na quinta-feira à noite. Apesar de várias vezes ter alertado para a vontade que este Presidente tem de dirigir o país a partir de Belém, Marcelo surpreendeu-me pela forma dissimulada como introduziu o tema. Rebelo de Sousa é uma daquelas pessoas que viveu com o objectivo de governar Portugal. Governar, não é um mero sonho, mas algo natural que advém da inteligência (cuja fama o próprio alimentou) e do meio onde cresceu. O facto de não ter conseguido ser Primeiro-Ministro não o impediu de ser Presidente. E quem considera o cargo que exerce um direito inato, dificilmente se escusa em esticar os limites do seu exercício. Aliás, e além de ter sido um mau Presidente no primeiro mandato, esta foi a principal razão que me levou a não votar em Marcelo, contrariamente ao que fiz em 2016.
A Constituição (e não esqueçamos que Marcelo é um constitucionalista) concede poderes ao chefe de Estado que um Presidente popular e habituado a encarar o país como se fosse a sua casa não terá problemas em utilizar. Menos ainda perante um Parlamento dividido e um Governo enfraquecido. Ora, a declaração de Marcelo na última quinta-feira coloca-nos uma série de questões: o que o leva a nos garantir que este não é o tempo para algo que nem sequer existe? Por que motivo estabelece que até à Páscoa não é tempo para crises políticas? Sê-lo-á depois? O que é para Marcelo uma crise sedutora?
Ainda há dias referi aqui no Observador o risco que representam os governos de iniciativa presidencial. Mencionei também que sendo a intenção de Marcelo fazer e desfazer governos tinha esperança que o Presidente não se deixasse seduzir pela ambição de, ele próprio, escolher os primeiros-ministros. O precedente colocaria em causa ao equilíbrio alcançado com a revisão constitucional de 1982 e que Sá Carneiro tanto desejou. Além disso, a personalização do sistema político é ainda mais perigoso num tempo em que os limites do bom-senso se tornam difusos. Seria no mínimo estranho que o regime terminasse, transformando-se desta forma.
Volta não volta escrevo sobre Marcelo e termino o texto prometendo a mim mesmo não regressar tão cedo ao tema. Na medida em que Rebelo de Sousa não me facilita a vida, não quero deixar comentar a declaração de António Costa proferida no mesmo dia. Nesta o Primeiro-Ministro referiu que, apesar da crise, a receita do IRS continuou a aumentar em 2020 por melhoria do rendimentos dos portugueses (minuto 29). Sabendo nós que, no sector privado, o desemprego aumentou e muitos estão a ganhar menos que antes, Costa só podia estar a referir-se aos funcionários do Estado. E com razão. Na verdade, foram os aumentos dos salários da função pública que levaram a um aumento da receita fiscal pois estes funcionários, ganhando mais, passaram a pagar mais IRS. Infelizmente, e neste caso, o ganho é nulo pois as receitas que o Estado recebe do IRS pago pelos funcionários públicos advém de dinheiro que o próprio Estado entregou a esses mesmos funcionários públicos. Dito de outra forma, não houve ganho, mas mera circulação de dinheiro. No entanto, a afirmação de Costa não deixa de ser reveladora da visão que tem do país. Fôssemos todos funcionários do Estado e o estado da economia seria outro, quiçá fantástico. E é assim que estamos com um Primeiro-Ministro que governa convencido que é dono dos votos a quem paga os ordenados e com um Presidente que preside um país que considera seu por direito.