Depois de uma longa maratona negocial com vários avanços e recuos, típicos em discussões desta magnitude, são boas as notícias que dão conta de um princípio de acordo para mitigar a crescente tensão nas relações comerciais entre os Estados Unidos e a China. Contudo, importa notar que esta “primeira fase” de um futuro acordo comercial mais compreensivo terá um alcance relativamente limitado ou o alcance que a China lhe estiver disposta a dar.

Como explica Cary Huang, veterano colunista do South China Morning Post, a guerra comercial foi iniciada por Washington e são os representantes do governo americano que estabelecem a agenda e exigem reformas a Pequim com a promessa de fazer cair as tarifas sobre importações chinesas. Basta reparar nas áreas sob escrutínio para se perceber isso mesmo: proteção dos direitos de propriedade intelectual, manipulação cambial, implementação de regulação transparente que trate empresas chinesas e estrangeiras de igual modo, questões relacionadas com transferência de tecnologia ou a reforma do modelo de administração dos chamados “campeões nacionais”, ou seja, grandes empresas controladas pelo Partido Comunista (PCC).

Assim, as tarifas aplicadas pela Administração Trump tornaram-se no principal instrumento de pressão política para extrair concessões a Pequim em áreas que servem os interesses estratégicos de Washington. Entre outros efeitos, as tarifas têm contribuído para o arrefecimento da economia chinesa, a quebra dos níveis de produção industrial e a aceleração de um processo de realinhamento das cadeias de produção internacionais que se têm movido em maior número para geografias mais a sul como o Vietnam, a Tailândia ou a Índia.

Se a economia chinesa não for capaz de responder a estes desafios, o PCC sabe que terá a sua legitimidade política em risco. Especialmente quando a estes desafios se juntam outros não menos graves como o rápido envelhecimento da população que colocará pressão sobre um sistema de segurança social ainda pouco desenvolvido. Além do mais, uma desaceleração demasiado brusca da economia poderá colocar em causa a transição económica da China de um país exportador para uma economia centrada no consumo interno. Até que ponto estará a China disposta a negociar reformas com os Estados Unidos?

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A resposta é tudo menos óbvia dada a opacidade do governo chinês. No entanto, a progressão das negociações será lenta, porque a guerra comercial é apenas a face mais visível de um conflito muito mais amplo entre duas grandes potências com sistemas políticos, modelos de funcionamento da economia e visões de sociedade marcadamente distintas que procuram reajustar as respetivas posições relativas numa ordem internacional em transformação. De um ponto de vista sistémico, qualquer observador realista diria que o que está verdadeiramente em jogo é a ascensão de uma nova potência que tenta desalojar a outra da sua posição ainda dominante.

A China tornou-se demasiado grande para se continuar a esconder e, sobretudo sob a liderança de Xi Jinping, tem agora a ambição clara de se reestabelecer enquanto potência dominante na região da Ásia-Pacífico. A estratégia chinesa é de longo prazo e socorre-se de um revisionismo histórico que procura refundar o antigo sistema tributário que durante séculos serviu os interesses imperiais, reverter o trauma psicológico dos Tratados Desiguais, a reconfiguração da ordem liberal internacional, o controlo militar do Mar do Sul da China e o reajustamento da posição chinesa em organizações internacionais como as Nações Unidas ou a Organização Mundial do Comércio (OMC).

As grandes empresas tecnológicas chinesas trabalham com o PCC em áreas como a videovigilância ou tecnologias de reconhecimento facial das quais o governo chinês se socorre para o controlo da população a uma escala orwelliana, bem como para tornar a sua máquina repressiva mais eficiente

Parece evidente que, para além da sua dimensão económica, a guerra comercial toca em outras áreas extremamente sensíveis como questões geoestratégicas, de segurança nacional ou até mesmo nos ciclos políticos domésticos. Nas últimas décadas, a natureza do comércio internacional transformou-se de forma significativa. Até aqui, o legislador estava habituado a olhar para o comércio como um tema essencialmente subordinando à troca de matérias-primas, bens intermédios, produtos para consumo final e, mais recentemente, serviços. A ordem internacional que nasceu do pós-Segunda Guerra Mundial foi criada para responder aos desafios de um mundo analógico muito diferente daquele que temos hoje. O crescimento vertiginoso do mundo digital, em particular o aparecimento de tecnologias e aplicações com fins simultaneamente civis e militares, trouxe novos problemas para decisores políticos, reguladores e a própria OMC que não estão devidamente preparados para os resolver.

Por exemplo, a democratização do acesso a plataformas digitais ajudou a acentuar fraturas e a expor algumas debilidades nas principais democracias liberais. Veja-se as interferências de atores externos nas eleições americanas ou a emergência de problemas associados a questões de privacidade, ciberespionagem e cibersegurança.

A sensibilidade destes temas gera ainda mais preocupação se levarmos em conta que as grandes empresas tecnológicas chinesas trabalham com o PCC em áreas como a videovigilância ou tecnologias de reconhecimento facial das quais o governo chinês se socorre para o controlo da população a uma escala orwelliana, bem como para tornar a sua máquina repressiva mais eficiente. É neste quadro que devemos olhar para a disputas com a Huawei ou para as exigências de reformas em áreas como a propriedade intelectual e a transferência de tecnologia. O campo de batalha da guerra comercial centrar-se-á igualmente nos sectores em que China mais tem investido nos últimos anos: veículos elétricos, baterias (sector fundamental completamente dominado pelas economias asiáticas), 5G, comércio eletrónico e inteligência artificial.

O domínio do mundo digital é uma preocupação que une Democratas e Republicanos nos Estados Unidos. De resto, o estreitamento da relação entre comércio e segurança nacional vem articulado em diversos documentos oficiais. Dois exemplos são a moção de estratégia elaborada por Peter Navarro e Wilbur Ross em 2016 durante a campanha eleitoral de Trump ou, mais recentemente, a Estratégia de Segurança Nacional de 2017 onde se sublinha que “ao procurarem erodir a segurança e prosperidade americanas, a China e a Rússia representam um desafio ao poder, influência e interesses americanos”. Outro exemplo é o reforço dos poderes de fiscalização sobre investimento direto estrangeiro nos Estados Unidos para proteger certas tecnologias ditas “críticas” de investimento externo, em particular chinês.

Encurralada no meio deste fogo cruzado, a OMC mostra-se incapaz de intervir com eficiência. A sua inoperância não é de hoje com os primeiros sinais a surgirem com o falhanço das negociações da ronda de Doha. A situação piorou na sequência do bloqueio do seu órgão arbitral que dirime disputas entre os Estados-membros. Aqui chegados, são várias as conclusões que podemos tirar. Por um lado, o comércio internacional encontra-se numa fase de disrupção, tornou-se mais complexo e as economias nacionais ainda não produziram legislação suficientemente robusta que possa ser transposta para uma dimensão global. Por outro lado, a paralisação da OMC é sintoma de falta de liderança e de um falhanço coletivo do multilateralismo que deixam antever que a regulação da economia e comércio digital será uma matéria a resolver do forma bilateral.

O mais interessante nesta guerra comercial é o toque de ironia histórica que subjaz ao confronto entre Washington e Pequim. Afinal, foram os Estados Unidos que, primeiro com Nixon e Kissinger, encetaram esforços para a normalização das relações políticas entre os dois países, garantindo ao regime comunista um lugar no sistema internacional. Anos depois, foram novamente os americanos que, do alto da sua liderança unipolar da ordem internacional, facilitaram a entrada da China para a OMC em 2001. Não obstante os esforços feitos por Pequim na execução de algumas reformas económicas indispensáveis, como se poderia ter a certeza de que seria possível conciliar as diferenças programáticas e ideológicas do PCC com os princípios básicos que regulavam a ação da OMC e, por extensão, da ordem internacional vigente?

Valores e princípios liberais são desrespeitados, direitos humanos desconsiderados, o Estado de Direito é aquele que serve os interesses do Politburo e uma economia dirigista com generosos subsídios a empresas públicas e privadas chinesas que arruína o principio da competitividade e se substitui ao livre mercado.

Em 2001, o mundo era diferente daquele que temos hoje. O terrorismo acabava de se tornar uma das prioridades da agenda política americana e os Estados Unidos eram os líderes destacados da ordem internacional a todos os níveis. O Japão era a segunda maior economia mundial. No espaço de vinte anos, muita coisa mudou. Duas guerras desgastantes no Afeganistão e Iraque levaram Washington a mover recursos para o Médio Oriente, descorando a importância crescente do Pacífico e Índico. Em 2008, a crise internacional condenou o Ocidente a um período de recessões e crescimentos medíocres que apenas começou a desanuviar nos últimos três ou quatro anos. No auge da crise, a economia chinesa cresceu entre 9% e 10% ao ano, canalizou recursos para a investigação e desenvolvimento militar, tornou-se o ponto nevrálgico das cadeias de produção industriais internacionais e começou a expandir a sua influência diplomática em África e América Latina. Como disse atrás, tornou-se demasiado para se esconder.

Em 2001, os Estados Unidos pensaram que a entrada da China para a OMC levaria a uma reforma gradual da sua economia e, por inerência, do seu sistema político. Isso não aconteceu. A China permanece um Estado comunista com uma pesada estrutura burocrática presente em todas as áreas da economia que assume o controlo de empresas-chave, que não joga pelas mesmas regras que os seus parceiros comerciais europeus e americanos e condiciona de forma arbitrária o investimento estrangeiro direto no país. Valores e princípios liberais são desrespeitados, direitos humanos desconsiderados, o Estado de Direito é aquele que serve os interesses do Politburo e uma economia dirigista com generosos subsídios a empresas públicas e privadas chinesas que arruína o principio da competitividade e se substitui ao livre mercado.

Pequim tem hoje um poder e influência que não tinha em 2001. Tem outros argumentos para tornar a relação com Washington mais conflituosa. Resta saber se estes são os primeiros passos de um “Guerra Fria digital e tecnológica” que se consolidará com a criação de um sistema regulatório dualista que separe os mercados chinês e americano. Por enquanto, ambos os países têm diferenças irreconciliáveis e só um deterioração dramática da economia chinesa forçará uma eventual aproximação de Pequim a Washington.