Chamavam-lhe, ora com algum carinho, ora com algum temor, DDT – Dono Disto Tudo. E tinham razão para o fazer: na primeira década do século XXI Ricardo Salgado conseguiu ascender à posição de homem mais poderoso de Portugal. Nunca foi o mais rico, nunca ocupou qualquer cargo público, mas chegou a haver momentos em que ninguém duvidava de quem punha e dispunha: era ele. Felizmente esse tempo não durou muito, e não o digo para demérito do banqueiro, digo-o porque essa hegemonia era sinal, era consequência e também era razão dos nossos grandes males como país.

Agora que Ricardo Salgado foi obrigado a sair pela porta pequena da liderança do banco da família não falta quem se delicie com o espectáculo e quem tire as “lições” dos costume a propósito dos ricos e da sua alegada impunidade. Não vou por aí. O que me preocupa em toda esta história é o que ela revela sobre as fragilidades do meu país.

Ricardo Salgado voltou a Portugal para reconstruir o império da sua família, que a revolução destruira em 1974 e 1975. Era já então a cabeça de uma dinastia de banqueiros que sabia, em cada geração, escolher o mais capaz dos membros do clã para colocar à frente dos seus negócios. Mas que, ao mesmo tempo, estava também habituada a cortejar e a envolver o poder político para ter direitos de preferência e acesso a oportunidades de negócio que eram negados a outros.

A forma como a família Espirito Santo conseguiu reconquistar o controle do banco familiar no processo de privatização, em que contou com alguma cumplicidade do poder político, foi apenas o primeiro passo. O crescimento do grupo, a sua influência tentacular, revelar-se-ia sempre uma mistura de qualidades próprias e de cumplicidades políticas. O BES não se tornou no maior banco português por ser o melhor banco português, mas por ter conseguido sempre ocupar o melhor lugar à mesa do poder. E por ter tido a atenção desse mesmo poder.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Portugal é uma economia pequena onde poucos podem ambicionar ser grandes. Para o conseguirem necessitam, sempre necessitaram, do apoio do poder político. O concubinato é antigo, vem desde os tempos nascentes do nosso imberbe capitalismo, e ainda esta semana Maria Filomena Mónica lembrava como, através dos velhos contratos do tabaco, no século XIX o Estado escolhia quem, de entre os ricos, se tornaria milionário. Ainda hoje a geografia dos palácios de Lisboa é a geografia das famílias beneficiárias desses contratos.

Há muito que penso que este é um dos nossos mais antigos e mais graves problemas. Do mais humilde desvalido aos mais selecto plutocrata, sempre se acreditou mais depressa na fortuna por via do Estado do que por arte e talento próprios. Era assim no tempo em que o importante era estar nas boas graças da Corte, continua a ser assim nestes tempos em que o que conta é conseguir capturar favores ou rendas do Estado. Houve e há excepções, mas a vida de quem tenta acreditar que somos uma economia e uma sociedade abertas é imensamente mais difícil – e o seu sucesso está por regra minado por intrigas.

O Portugal em que Ricardo Salgado sempre se movimentou bem é o Portugal dos poderes dominantes, das empresas de regime avessas à concorrência, dos rendimentos garantidos por contratos leoninos, dos telefonemas para os ministros a expor um ponto de vista, um interesse, o Portugal onde todos devem favores a todos, mas sempre sem sair do círculo dos eleitos, dos que já são, já estão, dos que se unem para barrar o caminho aos que procuram desafiar as hierarquias estabelecidas. É um Portugal que olha de soslaio para os reguladores independentes – ou então tenta torná-los dependentes. É um Portugal que se dá bem, muito bem mesmo, com os governantes que gostam de dizer que controlam a economia, que têm “orientações estratégicas” e que se afirmam defensores do “centros de decisão nacionais”.

A quantidade de casos que, em Portugal, no Luxemburgo ou em Miami, envolveram o grupo Espírito Santo, a quantidade de áreas de negócio onde parecia ser sempre necessária a cumplicidade dos poderes públicos, são os sinais exteriores de uma vida interior habituada a conseguir nos gabinetes o que muitas vezes não se conseguia deixando os mercados funcionar livremente.

É por tudo isso que eu quero acreditar que a acção tão minuciosa e discreta, de formiguinha, do Banco de Portugal é o sinal de uma nova era. É por isso que gostava de ter a certeza que o “não” do governo português ao envolvimento da Caixa Geral de Depósitos numa espécie de resgate envergonhado do grupo não se transforma num “talvez” ou mesmo, como outros protagonistas, no “sim” de um reencontro.

Ao contrário de muitos dos que salivam com a queda de um poderoso, eu preocupo-me com a capacidade de o meu país mudar de hábitos, perceber que os excessos cometidos, se são um reflexo de uma cultura empresarial e política com muitas décadas (porventura séculos) de tradição, não são práticas de todos – não são todos iguais, não podem ser todos iguais. Defendo que aquilo de que precisamos não é de mais políticos a vigiar os empresários, é de mais distância, mais independência, entre o mundo das decisões políticas e o mundo das decisões empresariais.

Nós precisamos de mais instituições, e de instituições mais fortes, capazes de assegurar esta separação. Precisamos de garantir que as regras do jogos são justas e iguais para todos, não se contornam com meia dúzia de telefonemas. Porque, mesmo alegoricamente, ninguém pode ser “dono disto tudo”. Nunca mais.