As eleições autárquicas são, por definição, eleições locais. Espera-se que façamos as nossas escolhas tendo sobretudo em consideração os candidatos às câmaras, às juntas, às assembleias. E assim têm por regra feito os portugueses, que nas eleições locais votam de forma bem diferente do que em eleições nacionais, esquecendo muitas vezes as suas preferências partidárias para escolherem aqueles que lhes parecem ser os melhores candidatos localmente.

Mas há alturas em que as eleições locais ganham uma dimensão nacional. Isso já aconteceu mais do que uma vez no passado – em 1982 um ligeiro recuo da Aliança Democrática numas eleições autárquicas precipitou a queda do governo de Francisco Balsemão, e em 2001 um noite eleitoral catastrófica para o PS acabou com António Guterres a pedir a demissão para evitar “o pântano”.

À partida ninguém espera que as eleições do próximo domingo possam provocar algo de semelhante – sobretudo ninguém pensa que o governo de turno, mesmo podendo os socialistas perder uma dúzia de presidências de câmaras, se sinta atingido na sua legitimidade. É contudo uma ilusão e um grave erro pensar que estas eleições – e estas eleições muito especificamente – possam ser reduzidas apenas ao seu caracter local.

O que está em causa este domingo não é saber quem ganha as eleições – com a vantagem de que dispõe o PS, mesmo que perca essa tal dúzia de presidências de Câmara nunca deixará de ser o maior partido autárquico. O que está em causa é saber se os socialistas consolidam ou não as suas posições e se, ao fazê-lo, se entrincheiram ainda mais no Estado, no aparelho do Estado e a todos os níveis desse mesmo Estado.

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O que está em causa este domingo também não é o Governo da República – nenhum lugar no Parlamento está em disputa e se alguma cabeça pode rolar é a do líder da oposição, pois sabe-se que repetindo o PSD um mau resultado eleitoral Rui Rio será desafiado na liderança do partido. Em contrapartida o que estará em jogo serão muitas políticas do Governo da República, com destaque para a forma como este está a lidar com o famoso PRR.

Isso não acontece por escolha da maioria dos candidatos autárquicos, que por eles estariam apenas as discutir os temas mais comezinhos das suas terras – isso acontece porque o primeiro-ministro/secretário-geral do PS resolveu fazer uma entrada em força na campanha, de bazuca em punho, percorrendo o país a prometer dinheiro barato e obras mil se os portugueses escolhessem os autarcas certos. Ou seja, os autarcas do PS, os autarcas (e os candidatos) que até têm o número de telemóvel dos ministros.

Este despudor e este frenesim não tem antecedentes nem paralelo, que eu me recorde, e recordo-me de todas as campanhas autárquicas, no Portugal democrático, pois nelas os primeiro-ministros por regra não se envolviam em demasia.

Desta vez António Costa fez o contrário e decidiu andar pelo país todo, fazer dezenas de comícios e “arruadas”, multiplicar as promessas e ainda permitir o envolvimento de vários ministros, com destaque para a ministra da Saúde. Não estando em jogo o equilíbrio parlamentar que lhe permite governar, só há uma explicação para este activismo: a vontade de reforçar o domínio (já avassalador) que o PS tem sobre o país e a consciência de que dispunha de uma oportunidade irrepetível para o conseguir, pois já pode ir ao banco buscar os milhões do PRR.

É por isso que, mesmo tendo o maior respeito pelas eleições autárquicas, mesmo sabendo que há sempre considerações locais em cada disputa eleitoral, seja para uma câmara ou para uma junta de freguesia, considero indiscutível que este ano os eleitores terão de considerar, no momento do voto, um outro factor: saber se estão ou não dispostos a contrariar a ocupação quase total do poder pelos socialistas, se querem ou não contrariar aquilo que hoje já é o poder excessivo do PS em todo o aparelho de Estado.

Esta não é uma questão menor porque, diga-se o que se disser, o PS não olha para o Estado nem para os dinheiros públicos da mesma forma que outros partidos democráticos olham.

O PS sempre sentiu que tinha um direito especial a governar (e muitos dos seus a governarem-se, como bem sabemos), sendo que este PS costista em particular lida mal com o princípio do governo limitado. É por isso que desde que tomou conta de São Bento esta governação passou a menosprezar tudo quanto são organismos independentes ou – o que tem feito sem disfarces e sem pudor – passou a ocupá-los com gente da sua confiança. Já no que respeita ao aparelho de Estado propriamente dito subverteu por completo o princípio dos concursos público e já encheu todos os lugares que pode com gente da sua confiança, por regra boys e girls de pouco competência mas muito fidelidade ao partido.

Um dos melhores exemplos de como os socialistas confundem tudo é a forma como esta semana o próprio António Costa resolveu atacar a Galp por causa da refinaria de Matosinhos. Não vou entrar nos detalhes do debate, vou só destacar o mais inaudito dos argumentos: o de que “dar uma lição exemplar” àquela empresa não seria mais do que obrigá-la a cumprir a lei, como se estivesse na mão do primeiro-ministro escolher quais as empresas que estão ou não estão dispensadas de cumprir essa mesma lei.

Limitar o poder dos socialistas, fazê-lo recuar se possível, obrigá-los a passar à oposição no maior número de autarquias possível, seja isso feito por troca com listas do PSD, da CDU ou de independentes, é, nestas eleições, aumentar o espaço de respiração da nossa democracia. É torná-la mais plural e menos claustrofóbica.

Mas há ainda um outro aspecto importante em que era bom contrariar os socialistas – é que este PRR que andou a ser vendido por todo o país como sendo a nossa salvação pode ser a nossa perdição (de novo). António Costa, como quase todos os socialistas, só sabe fazer “obra” se tiver um livro de cheques à mão, por isso compreende-se a alegria com que anuncia a bazuca e a urgência que tem em gastar todo o dinheiro, bem ou mal. O problema é que muito dinheiro aplicado sem tino não gera necessariamente mais crescimento no futuro, pode até ter o efeito perverso de gerar apenas mais despesa pública.

A maioria dos portugueses (60,5%) já percebeu que o dinheiro da bazuca irá beneficiar sobretudo os políticos e os empresários que vivem na esfera de quem manda em Portugal e que o conjunto do país pouco beneficiará com tal chuva de milhões. Não se enganam, mas resta saber se preferem juntar-se aos que esgravatam no bolo, esperando pelas migalhas, ou se aproveitam já a oportunidade destas eleições para mostrar que há outros caminhos e que nem todas as chantagens são toleráveis.

Por isso, sendo as eleições de domingo locais, há muitas considerações nacionais que não deveríamos esquecer no momento de tomar a decisão final sobre o nosso voto. Espero que os eleitores as tenham em consideração no momento de depositarem o seu voto na urna.