Também já fui ver o Silêncio, de Scorsese, e também saí do cinema sem palavras. Por um lado, profundamente interpelada, mas por outro, frustrada. Para dizer a verdade, perguntei-me várias vezes ao longo do filme porque é que tinha escolhido vê-lo naquela noite. Sinceramente não me apetecia, mas já que tantos disseram que valia a pena ir, fui. E, para manter toda a verdade, não gostei tanto como esses outros dizem que gostam.

De que é que não gostei? Pensando bem acho que me desiludiu não encontrar no filme as razões do amor a Deus, bem como o amor de Deus por nós, sem razões. Bem sei que tudo se passa no séc. XVII, num Japão ainda mais remoto e rural, em que a catequese não era a que temos hoje nas cidades e centros universitários, nos templos abertos, nos países sem perseguições e nos lugares mais evoluídos, por assim dizer, onde consagrados e leigos revelam um Deus de amor e misericórdia, um Deus que usa o silêncio para falar e atravessar o concreto da vida de cada um.

Este Deus de que nos fala o Papa Francisco, que nos enche de liberdade interior, nos move a ser generosos e humildes, nos faz dar passos no sentido de perdoar, de acolher e de amar qualquer próximo, aquém e além fronteiras, aparece distorcido no filme. A liberdade interior manifesta-se na capacidade extrema de aceitar o martírio, mas o Deus que no filme é fervorosamente venerado por aldeões e padres missionários, quase idolatrado, que aparentemente só gera mártires e apóstatas, esse Deus faz um eco estranho que eventualmente pode confundir-se com outras idolatrias.

Este Silêncio convoca ao silêncio interior e obriga a parar para reflectir, não há dúvida. Percebo a multiplicação de tertúlias e encontros públicos organizados para debater o filme e falar sobre o impacto que tem em quem o vê. Mas a mim faltaram-me peças essenciais para entender a substância da veneração das comunidades naquela época. Faz falta perceber porque é que comunidades inteiras aderiram aos ensinamentos e revelações dos missionários ao ponto de aceitarem tudo menos renegar a sua fé. Por outro lado, faltam no filme falas e diálogos (ou talvez pausas e silêncios) para além das imagens cruentas das permanentes e sucessivas torturas.

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Sei e todos sabemos que aconteceram aquelas coisas e outras ainda piores. Choca sempre ver um homem torturar mulheres e homens, e claro que custa assistir a essas cenas, mas não custa mais do que a ausência da outra parte. Precisava do realismo de um lado e do outro. Fez-me falta ouvir o que diziam os que falavam de Deus naqueles séculos, naquela latitude. Senti que Scorsese preferiu o modo documentário, cinematograficamente preso aos factos históricos das torturas e perseguições, em que as imagens fortes e que ficam a fazer eco são as do terror, mas podia ter posto na boca dos missionários ou dos devotos a novidade do amor a Deus que tantos ódios gerou.

Não posso dizer que o filme de Scorsese é mau, apenas me parece incompleto e sublinho a falta de uma parte essencial que, na minha opinião, passa por mostrar o que fazia aqueles homens e mulheres acreditarem. Qual a força da sua conversão e o porquê da sua recusa à negação. No fundo falta a experiência do amor, o amor de Deus que se traduz no amor pelas pessoas e entre elas. No filme vence o ódio e, aparentemente, a traição porque a essência do amor de Deus é relegada para um plano secundário e fica oculta, quase tão clandestina como o próprio culto dos cristãos japoneses.

Aliás, esse amor aparece garantido à partida nos missionários que vão da Europa para o Oriente bem munidos de fé e coragem, e também aparece ‘feito’, gravado no coração dos japoneses convertidos que reúnem em segredo e se mantêm fiéis apesar do inquisidor. Esse amor é depois negado pelos apóstatas, mas na verdade nunca temos acesso no filme àquilo que uns conseguiram salvar e outros não. Ou seja, nunca nos é dado ver o coração do coração de Deus.

Nesta lógica, Deus parece travestido de ídolo, castigador e caprichoso.

Aos olhos de quem conhece os Evangelhos ou de quem está dentro da terminologia jesuítica e conhece bem a arquitectura mental de Santo Inácio, traduzida e perpetuada nos seus Exercícios Espirituais, o filme faz sentido porque acaba por estar a ‘pregar para convertidos’ e conhecedores, mas pondo-me no papel dos outros, dos que não crêem e dos que não sabem ou não conhecem, pergunto-me se Scorsese não poderia ter ido mais longe na forma como revela o Deus que levou e continua a levar os missionários às terras de missão.

Ou seja, indo tão longe no retrato dos que odeiam o Deus dos cristãos, revelado por Jesus Cristo, bem como na exibição da apostasia, não valeria a pena ir também mais longe na revelação da substância do amor de Deus e por Deus?

No século XVII os missionários convertiam a partir do testemunho de Jesus e não de uma ideia de Deus distante, castigador, do Antigo Testamento. Por isso, esperava ver no filme este amor novo dos filhos e amigos, dos irmãos e companheiros de Jesus que querem viver para amar e servir, também ele traduzido em imagens e diálogos. Isto para que o amor de Deus ficasse a fazer eco a par do Seu silêncio e dos dramas da negação sob tortura.