Aquilo que será a próxima legislatura, assumindo como todas as sondagens sugerem, que o PS ganhará as eleições, dependerá decisivamente de ter ou não ter maioria absoluta. Considero que só um partido que tenha um grupo de estudos forte e formação de quadros adequada merece ter uma maioria absoluta, algo que nem o PS nem os outros partidos têm. Assim, a probabilidade de se cometer alguns erros desastrosos para o país com maiorias absolutas é muito elevada. Nesta legislatura apresentei um projeto lei (não votado) que permitia enveredar pelo caminho do empoderamento partidário. O financiamento partidário não devia ser exclusivamente para funcionamento corrente dos partidos e para campanhas eleitorais como hoje acontece, mas devia, em parte, ser canalizado para think tanks e para formação (bolsas de estudo). Pode ser defeito académico, mas não concebo a ação política por intuição, ou seja sem ser tecnicamente fundamentada. Cabe aos políticos a decisão, mas cabe aos técnicos o estudo das alternativas, e dos custos e benefícios dos diferentes cursos de ação. A decisão política não deve ignorar esta reflexão técnica.
É por a política portuguesa se basear no “achismo” que temos o luxo, ou o desperdício, de ter 21 partidos a concorrer às próximas eleições com centenas de propostas, inevitavelmente algumas delas relevantes outras que não fazem sentido. Neste artigo abordo algumas temáticas que me são particularmente caras, analisando o que delas dizem os partidos políticos nos seus programas e o que se poderá esperar no final da legislatura.1
1. Reforma do sistema eleitoral, algo de novo? Uma significativa renovação do sistema político só se faria com a reforma do sistema eleitoral. Dado que a alteração da lei necessita de dois terços de deputados, ou seja um acordo PS+PSD, ou eventualmente PS+BE+PCP+PAN, não se vislumbra grande possibilidade de reforma. O PS mantém a proposta de sistema misto, à alemã, que me parece correto, mas esbarra na casmurrice de PSD que insiste num tópico que impede o diálogo: a redução do número de deputados. À esquerda também não parece haver hipóteses: o BE continua a não perceber que o modelo alemão, para além de mais justo, o beneficiaria eleitoralmente com a criação de círculos maiores, e o PCP a não perceber que essa alteração, em nada reduziria o poder do partido escolher os seus deputados e até facilitaria uma das suas bandeiras (a regionalização). Entre um diálogo de surdos à direita e o desconhecimento à esquerda nada se passará. Continuaremos com o modelo actual: votem nos partidos que os diretórios partidários escolhem os deputados.
2. Maior abertura aos cidadãos? Aqui poderá haver um avanço aparente, para fingir que até se está a dar maior poder aos cidadãos, mas o essencial é deixado de lado. Vários partidos falam explicitamente nos seus programas eleitorais em baixar o número mínimo de cidadãos que devem subscrever uma iniciativa legislativa (ILC), algo que já aconteceu na revisão da lei. Mas mais importante que isso é o âmbito de matérias sobre as quais podem incidir as ILC. Por razões inexplicáveis, quer constitucionalmente quer de outra ordem, as ILC não podem incidir sobre várias matérias de reserva absoluta parlamentar, nomeadamente a reforma do sistema eleitoral. A próxima legislatura pode dar aqui algum avanço, mas se não alargar o âmbito de aplicação das ILC será um pouco de cosmética política para agradar ao povo.
3. Reformas do Estado: seleção de dirigentes e formação. A “reforma do Estado” não existe, e sobretudo não tem a ver com o revisitar das funções do Estado. Tem a ver com outras cinco coisas. Seleção de dirigentes do topo e intermédios, seleção e formação de trabalhadores, modelos de governação pública, melhoria da gestão pública e modelos de articulação do público com os sectores social e privado. Nenhum partido apresenta propostas coerentes nesta dimensão. Há, contudo, algumas propostas parcelares, nomeadamente em relação aos cargos dirigentes e a CRESAP. BE e CDU nada dizem sobre o assunto. O PSD dedica alguma atenção e detalhe à formação dos cargos dirigentes e trabalhadores (e.g. protocolos entre o INA e Universidades na formação de dirigentes). O PS tem algumas ideias inovadoras (o dirigente máximo poder escolher a sua equipa, para ser mais responsável pelos resultados) e revisitar e melhorar o modelo de seleção de dirigentes, nomeadamente na transparência. É ambíguo pois não fala explicitamente na CRESAP, nem em que direção será o revisitar do modelo. O PAN tem propostas interessantes (limitar os mandatos de cargos intermédios, aumentar a independência da CRESAP). Os novos deputados na AR terão em “arquivo”, três projetos leis que apresentei, um deles com reforma estrutural da seleção de cargos dirigentes, que poderão ser inspiradores caso queiram fazer alguma coisa neste domínio.
4. Contas públicas: saldo orçamental. Repete-se, ao contrário, a história de 2015, onde PSD/CDS não apresentaram contas, e PS apresentou. Agora a oposição (PSD) mostra os números e o governo não. O PS não apresentou nem cenário macroeconómico, nem orçamental. Apenas em Abril o Programa de Estabilidade. Devia tê-lo feito por um requisito de transparência democrática. Preferiu apenas Mário Centeno avançar com números nesta semana. No programa consta apenas o objetivo de ter excedente orçamental. Alcançá-lo depende da futura equipa das finanças. PSD, CDS e PAN, pretendem um quase equilíbrio, embora a proposta do PAN, de um pequeno défice, seja a mais razoável. Já por seu lado, BE, CDU têm um conjunto de propostas, que não quantificam, mas que agravariam substancialmente as contas públicas. A concretizar-se levariam a um descontrolo orçamental, descida do rating da república, e parte do ganho marginal orçamental derivado de maior crescimento económico seria comido pelo aumento dos juros da dívida. PS com maioria absoluta e equipa sólida nas finanças, terá política mais restritiva. PS sem maioria absoluta e com acordos (seja BE, PCP ou PAN), será mais expansionista, terá maior défice e dará mais importância à qualidade dos serviços públicos, sem resvalar para o despesismo orçamental.
5. Contas públicas: a dívida. PCP/PEV e BE fazem bem em não deixar cair a bandeira da reestruturação da dívida, mas nada dizem sobre a forma como pode ser feita num quadro alargado de outras grandes dívidas europeias (Grécia, Itália, etc.). No caso do PCP pretende-se desmantelar a União Económica e Monetária, algo irrealista e indesejável. PS e PSD querem continuar a reduzir o peso da dívida nesta legislatura para próximo de 100% em 2023. O único problema desta estratégia é que a vulnerabilidade financeira mantém-se para 2023-27 e que uma subida das taxas de juro ou uma recessão poderão vir a reverter esta tendência de descida do peso da dívida. Com uma economia mundial, europeia e nacional a abrandar o crescimento, é ambicioso almejar alcançar este objetivo. E certamente antes de 2027 teremos algumas novidades menos interessantes.
6. Serviços públicos: Cultura Um exemplo simples de serviços públicos ilustra como se posicionam os vários partidos políticos. Mais à esquerda, PCP/PEV e BE ambos colocam a fasquia da despesa a realizar como em 1% do PIB. O Bloco como objetivo imediato, o PCP como algo a alcançar. Nada dizem sobre como se financiam os 1600 milhões de euros necessários para o alcançar (mesmo incluindo a RTP na Cultura). Só podemos concluir que seria agravando o défice. O PS apresenta uma ideia interessante (criar uma conta satélite da cultura), tem inúmeros objetivos, mas quanto a recursos adicionais não há (2% das despesas discricionárias do Estado pode nem aumentar a despesa atual orçamentada em 491 milhões com RTP). Apenas o PAN apresenta uma ideia completa, um objetivo para os acréscimos da despesa e da receita para a financiar (reforço de 235 milhões, o equivalente à despesa actual sem RTP, financiado através da subida do IVA hotelaria de 6% para 13%, pago em três quartos por não residentes). Nesta legislatura, das duas uma, ou se arranjam fontes de financiamento adicionais para a cultura, esta ou outras, ou todas as belas palavras dos programas eleitorais sobre a cultura serão isso mesmo e chegaremos ao fim com a mesma constatação: não há dinheiro na cultura.
As políticas públicas envolvem frequentemente recursos públicos. Os programas partidários deveriam quantificar muito mais as suas propostas para se tornarem credíveis. Não o fazendo está-se no domínio das boas intenções e da fé. Mas como sabemos o inferno está cheio de boas intenções.