Dediquei os últimos dois artigos ao pântano político em que estamos imersos. Sair dele com um desenlace feliz a seguir às próximas eleições – no sentido de uma solução política com alguma estabilidade – não depende apenas, nem sobretudo, do resultado eleitoral. É óbvio que uma maioria absoluta de um partido daria essa estabilidade, mas além de pouco provável comporta grandes riscos. Mais que a contabilidade dos votos o que verdadeiramente interessa é a capacidade de construir compromissos razoáveis baseados em acordos escritos.

É nesse sentido que vale a pena olhar para outros países e o caso da Alemanha é paradigmático. As eleições legislativas foram a 26 de Setembro e cerca de dois meses depois, e após aturadas e discretas negociações, foi possível chegar a um acordo escrito de 177 páginas sobre medidas algumas das quais com elevado detalhe entre o vencedor das eleições – os sociais-democratas do SPD – o terceiro partido mais votado (os Verdes) e o quarto (os liberais). Certamente que a esquerda e a direita também existem na Alemanha, mas não há um muro de Berlim a dividi-las. Nem os partidos vão para as eleições dizendo, como alguns líderes por cá o fazem, que como existe um muro ideológico, só falam com quem estiver desse lado da barricada. Os verdes estão mais à esquerda, o SPD no centro-esquerda (sendo o seu líder Olaf Scholz relativamente conservador) e os liberais à direita.  Isso não impediu que os líderes chegassem a acordo, que terá de ser ratificado pelos respetivos partidos. A concretizar-se este novo governo será uma lufada de ar fresco não apenas na Alemanha, mas em toda a Europa.

Obviamente que quando se celebra um acordo entre partidos que são significativamente diferentes reforça-se os pontos em que existe concordância e omite-se ou deixa-se nalguma ambiguidade aqueles em que há mais divergências. Um ponto central de convergência é a necessidade de construir um “estado europeu federal” e de diminuir o número de decisões que são tomadas com regra da unanimidade que dá poder de veto a todo e qualquer país europeu impedindo a integração e a ação. Grande parte dos alemães já percebeu que a relevância, autonomia e soberania da Europa, face aos EUA e à China, só se faz com uma Europa federal. A alternativa, dos soberanistas nacionais e dos nacionalistas, é a soberania nacional numa Europa em declínio acelerado (há vários portugueses que defendem o federalismo europeu,  mas quantos partidos políticos portugueses são capazes de dizer claramente que defendem uma Europa federal?). Também não me parece existir grande divergência no que toca às regras orçamentais. Não esquecer que Scholz era o ministro das finanças de Merkel, que Lindner (o líder dos liberais) será o futuro ministro das finanças e que a Alemanha tem uma regra de limite à divida na sua própria Constituição. Isto significa que haverá certamente uma simplificação das regras orçamentais na EU – o que só podemos saudar por reconhecermos o labirinto em que se tornaram as regras orçamentais europeias – mas não haverá um abandono do essencial dessas regras.

Cada partido trouxe obviamente os seus temas para o acordo e colocou as pessoas “certas” nas pastas certas. Os sociais democratas a subida do salário mínimo e políticas sociais, os verdes uma aceleração na transição para a descarbonização da economia (com a antecipação para 2030 do fim das centrais a carvão), um maior enfoque na preservação do Estado de direito na relação com países europeus (leia-se Polónia e Hungria) bem como agendas  das famílias queer; os liberais ao assumirem a pasta das finanças garantem que não se vai longe demais no relaxar das regras orçamentais apesar de Lindner já ter moderado o seu discurso em relação a este tópico.

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Aquilo que foi alcançado esta semana é já de si histórico: uma proposta de coligação juntando aquilo que não são propriamente aliados naturais, nomeadamente a relação entre os liberais e os verdes. O acordo foi obviamente pensado para poder ser aprovado pelas bases dos vários partidos, e não está propriamente quantificado havendo até algumas incongruências sobre a forma como se poderá vir a financiar alguns investimentos estruturais anunciados para a transição climática e digital, sem se aumentar os impostos. O acordo não é um programa de governo, mas também não é apenas uma operação de charme para as bases dos respetivos partidos pois um programa que se afaste muito do que é aqui anunciado significaria uma fraude para os que o aprovaram.

Há dificuldades no caminho? Certamente que há. Desde logo uma aprovação do acordo, sem demasiadas vozes descontentes. Depois não esquecer que o parlamento alemão é bi-cameral, e que se a coligação “semáforo” (vermelho, amarelo e verde) tem maioria na câmara “baixa” (Bundestag), já poderá não a ter  na câmara “alta” (Bundesrat) onde estão representados os Estados. Esta é mais volátil, pois vai sendo alterada com as eleições parlamentares nos vários Estados federados, pois os representantes da câmara alta são simultaneamente membros dos governos estaduais que respondem perante os respetivos parlamentos. Finalmente, é no exercício do poder político e na implementação das medidas que as divergências poderão surgir.

Portugal tem muito a aprender com os alemães.

Viveríamos todos mais tranquilamente se soubéssemos que qualquer que seja o resultado das eleições de 30 de Janeiro os partidos políticos capazes de formar uma maioria parlamentar ofereceriam ao país uma solução política estável com um programa assente nalgumas das suas propostas eleitorais cujo relevo e importância dependeria do voto dos portugueses.