Foi Marcelo Rebelo de Sousa – quem haveria de ser? – que abriu o concurso. Perante o chumbo do Tribunal Constitucional e a divisão do PS, a questão é: que teria feito Francisco Sá Carneiro, fosse ele o primeiro-ministro? Segundo Marcelo, Sá Carneiro ter-se-ia demitido e provocado eleições. Talvez. Mas quando o nosso professor favorito reduz tudo ao gozo de “apanhar o PS com as calças na mão”, parece sugerir – digo-o com todo o respeito e estima – que, ou nunca levou a sério Sá Carneiro, ou não leva a sério a situação do país, ou ambas as coisas.
A última memória de Sá Carneiro é a do Outono de 1980. Em Outubro, renovou a maioria absoluta no parlamento, apenas para arriscar tudo outra vez nas eleições presidenciais de Dezembro. Percebe-se porque é que alguns foram levados a diagnosticar o fundador do PSD como um caso sublime de impulsividade política. Mas sem razão.
Sá Carneiro não foi um político de casino. A sua decisão de 1980 assentou numa avaliação desassombrada das circunstâncias. A maioria absoluta de pouco valia perante os espartilhos a que a governação estava sujeita. O Tribunal Constitucional ainda não existia, mas havia o Conselho da Revolução. O Presidente Eanes até podia subscrever o ideal de sociedade da Aliança Democrática, como chegou a confessar, mas zelava fielmente pelos compromissos do 25 de Novembro, o que, na prática, submetia qualquer governo aos limites impostos pelo resto do “Grupo dos Nove” e pelo PCP. A ideia de Sá Carneiro não era, porém, precipitar um confronto apocalíptico. Acreditava na possibilidade de um novo compromisso de regime, à volta da europeização de Portugal. Esse projecto dividia as esquerdas. O líder da AD contou sempre com a oposição entre o PS e o PCP, e, dentro do PS, entre os soaristas e os eanistas.
Sá Carneiro podia ter pensado em ficar no governo durante uns anos, como os seus sucessores ficaram até 1983. Não teria escapado ao desgaste de uma irrelevância crescente, como eles não escaparam. Ele reconhecia uma grande razão para tentar forçar as fronteiras da acção política: aproximar o país dos padrões da Europa ocidental. Tivesse ganho em 1980, e não teríamos esperado mais uma década para rever a parte económica da constituição.
O que teria feito Sá Carneiro? Muito provavelmente explicaria duas coisas acerca dos vetos do Palácio Ratton: primeiro, que são incompatíveis com a recuperação da economia, que não se favorece agravando incertezas e impostos; segundo, que comprometem a permanência de Portugal na moeda única e põem em causa a razão de ser do regime: a modernização do país através da integração europeia.
Teria ainda percebido que a divisão do PS, para além do folclore pessoal, é também o reflexo da desorientação das esquerdas. As esquerdas perderam a esperança de uma Europa socialista. Os mais radicais refugiam-se numa espécie de lepenismo vermelho, em que já está o PCP e a que aderiu Francisco Louçã, entretanto renascido como inimigo do euro. Pouco faltará para que a “ala esquerda” do PS comece a tentar empurrar o partido para os mesmos extremos lunáticos. Um governo pró-europeu pode apelar à parte lúcida do PS e da esquerda, para formar um centro reformista alargado.
Sim, talvez Sá Carneiro já tivesse antecipado eleições. Não por habilidade, mas porque o que está em causa exige clarificação e porque há condições políticas para essa clarificação. Fazer como Sá Carneiro, é perguntar: quem governa e para onde vamos? Não sei se as actuais gerações da política portuguesa têm a resposta. Mas é trágico que nem sequer consigam fazer a pergunta.