É verdade: comecei a ler Marcelo Rebelo de Sousa aos 13 anos. Não se choquem nem tenham pena de mim. Estávamos em revolução. A política era tudo, e tudo era política. Não se conseguia acabar um almoço de família sem uma troca de palavras agrestes por causa das últimas notícias. No recreio do liceu, comparávamos os EUA e a União Soviética. Como diria Eça de Queiroz, éramos assim absurdos em 1975. No meio desta babel, eu gostava de ler Marcelo.

Marcelo era diferente. Escrever editoriais ou crónicas significava então tomar partido. Estava em causa o futuro, e tudo parecia possível. O que um colunista proporcionava aos seus leitores era simples: a evidência de que eles estavam certos, e os outros errados; a certeza de que com eles haveria democracia, e com os outros, ditadura. Mas Marcelo, no Expresso, não era assim. Quase todos os colunistas combatiam numa guerra civil. Ele assistia a um jogo. Fazia “análise”, não tomava partido. Esta semana, dizia ele, Cunhal jogou muito bem. Na semana seguinte, dava pontos a Soares. Marcelo descrevia manobras, deduzia tácticas, calculava avanços e recuos, e até descobria leis, como esta, que nunca esqueci: quem avança primeiro, perde. Era como se tudo fosse futebol, e pudéssemos distrair-nos com o espectáculo.

Quase cinquenta anos depois, nada disto parecerá muito extraordinário, por esta razão: é assim, como Marcelo em 1975, que hoje todos falamos ou tentamos falar de política. Viu-se a semana passada. Ninguém quis saber quem tinha razão: o que importava era perceber quem se saiu bem. Agora toda a gente faz “análise”, e o que se analisa não são as ideias e as políticas, mas o procedimento, ou, como dizem os entendidos, com um tremor científico na voz, o “timing” e a “comunicação”.

Há muitas razões para isso. Umas boas, outras más. As boas são que já não estamos em revolução, há regras, há limites – há, felizmente, democracia, e uma democracia europeia. As más são que esses limites vão muito além do que é saudável numa democracia. O regime afunilou-se, através da sua integração na UE e sobretudo dos compromissos sociais assumidos pelo Estado. Não se pode manter a TAP nacionalizada à maneira dos anos 70, mas também não se pode baixar impostos à maneira dos anos 80. Socialismo e liberalismo tornaram-se princípios académicos. Por outro lado, o BCE garantiu-nos contra rupturas financeiras, como as que no passado provocaram alternância e viragem na governação. A política parece ter poucas consequências. Pode portanto ser desfrutada como um jogo que os políticos profissionais jogam, e que depois gente mais ou menos informada e doutorada “analisa”. As boas jogadas são naturalmente mais valorizadas do que as boas ideias. Só os clubistas parecem ter razões para se importarem com quem ganha e com quem perde.

Tudo agora é igual a uma crónica de Marcelo. O ponto de vista que em 1975 parecia original, é hoje rotina. Há quem se queixe, claro: não se fala dos problemas. Mas que poderíamos fazer com os problemas? Aliás, porque é que teríamos de fazer alguma coisa, se o BCE nos garante que isto vai durar? Terá fim? Sem dúvida, mas ninguém sabe quando. Amanhã pensaremos nisso, como Scarlett O’Hara. Enfim, querem que vos confesse tudo: eu, antigo fã de Marcelo, eu que não acendo velas às revoluções, apanho-me às vezes, em momentos de tédio, a ter saudades dos colunistas que em 1975 comiam e cuspiam fogo, que não analisavam, mas combatiam, quando a política tinha demasiada importância para ser confundida com um qualquer desporto ou mesmo com uma qualquer ciência.

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