Dizem-nos agora que afinal não se passou nada. Que o primeiro-ministro se demitiu, e o presidente da república dissolveu a Assembleia da República por razão nenhuma. Que se tivessem esperado uns dias, governo e maioria teriam saído incólumes e nos teríamos poupado a eleições antecipadas. Desculpem, mas esperam mesmo que nós acreditemos nisto?

Comecemos por aqui: o primeiro-ministro e o presidente da república podem ter muitos defeitos, mas a inexperiência não é certamente um deles. Acham que António Costa se teria demitido sabendo que, apesar das suspeitas do Ministério Público, nada de sério se passava com os seus colaboradores e amigos? É óbvio que o primeiro-ministro e o presidente da república tiveram razões para recear um grande escândalo, e só o puderam recear porque sabem como os socialistas mandam no país, e têm consciência das irregularidades, abusos e aproveitamentos pessoais que decorrem desse mando.

O juiz de instrução não concordou com todos os indícios apresentados pelo Ministério Público? Pois não, mas também não absolveu os arguidos. Vamos agora fingir que o crime de tráfico de influências já não é crime? Acham que basta chamar-lhe lobbying? Tenham então a coragem de legalizar o favoritismo e a obtenção de vantagens na governação. Declarem que em Portugal só pode investir e trabalhar quem tiver meios para contratar os amigos do primeiro-ministro, e conseguir os telefones e as simpatias dos ministros. Assumam que o Estado e o país são só para os socialistas e os seus amigos, e que todos os outros portugueses estão a mais. Determinem que só há lei para quem não tem cartão de militante socialista.

Tudo isto, mais a indicação do presidente do Banco de Portugal para primeiro-ministro, dá a medida da imensa degradação institucional a que o poder socialista sujeitou a democracia portuguesa. O tráfico de influências serve a economia nacional? Alguém pode ser, conforme convém aos interesses da facção no poder, regulador independente e chefe de uma maioria partidária? Desculpem, mas não. O mundo não é tão absurdo como nos querem fazer crer. O tráfico de influências, o acesso privilegiado e o favorecimento nunca desenvolveram uma economia. A captura de todas as instituições pelo partido do governo nunca reforçou uma democracia.

A verdade inconveniente é que décadas de poder pelo mesmo grupo político em Portugal subverteram o regime democrático, tornaram o abuso, a promiscuidade, o nepotismo e a corrupção a forma normal de fazer as coisas, e criaram uma enorme desconfiança em relação a tudo e a todos. Não, a demissão do primeiro-ministro e a dissolução da Assembleia da República não resultaram das pretensões e das pressas de um pequeno número de magistrados. Isso poderia ter momentaneamente chocado, mas nunca teria derrubado uma situação política séria e prestigiada. A demissão e a dissolução resultaram de nós todos sabermos como o poder socialista funciona, e de o poder socialista saber que nós sabemos. Foi isso que não os deixou continuar, e não um parágrafo num comunicado.

O que derrubou António Costa foram 28 anos de degradação socialista, e não uma investigação avulsa. Não foi este processo, foram todos os processos, todos os casos, todas as histórias – a sua frequência, a sua acumulação, a sua inevitabilidade. O regular funcionamento das instituições democráticas não é um detalhe do regime, mas a sua pedra angular: sem isso, nada é a sério e tudo cai. Os actuais líderes do Partido Socialista – os que se demitiram e os que agora são candidatos – já provaram não serem capazes de assegurar esse regular funcionamento. São hoje, objectivamente, um limite ao desenvolvimento do país e uma ameaça à democracia.

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