Há uns tempos que ando a pensar recolher um pouco de saliva para meter num tubinho e enviar para uma daquelas empresas que estudam o DNA e identificam as nossas origens. Tenho curiosidade de saber que percentagem de sangue judeu tenho (suspeito que quase todos em Portugal temos algum sangue judaico), assim como identificar a possível origem do meu tom de pele um pouco mais escuro (será árabe? Berbere? Indiano? Subsaariano?), se é que tem alguma para além da tez mais curtida das nossas Beiras. Mas tudo isto não passa disso mesmo: de curiosidade. Não ando à procura de nenhuma identidade, sobretudo não ando à procura de nenhuma identidade que esteja fixada nos meus genes, no meu tom de pele ou no facto de ter nascido com um cromossoma X e um cromossoma Y. Não quero sobretudo ser tido como alguém “racializado branco” por oposição a quem se tem por “racializado negro” e usa essa condição como arma política. Como Mamadou Ba.

Eu sei que a maioria dos portugueses nunca tinha ouvido falar do assessor parlamentar do Bloco de Esquerda até que este surgiu nas notícias como o dirigente do SOS Racismo que escrevia posts no Facebook sobre a “bosta da bófia”. Para esses todo o debate se centrou na semiótica daquela expressão, no dinheiro que ganhava como assessor e na suprema ironia de ter sido vítima de uma “grandolada” ao contrário, tristemente protagonizada por extremistas do PNR e que o levou a pedir proteção à dita “bófia”. Ou ainda na lamentável esterqueira das redes sociais, onde não faltaram grosserias, javardices, mesmo ameaças intoleráveis. Como eu próprio também já conheci esse tipo de ambiente, perdoem-me se não o valorizo em demasia.

O que me interessa é o que fica, e o que fica é o que já cá estava antes de tudo o que se passou depois dos incidentes no bairro Jamaica. E o que fica, e o que é mais perturbante, é aquilo a que me referi na última frase do meu texto da semana passada: “discursos como os de Mamadou Ba fazem mais racistas do que anti-racistas”. Por uma razão simples, que quero desenvolver hoje: porque são racistas.

Temos de recuar no tempo para compreender melhor o que está em causa.

E temos de recuar porque temos de regressar a Martin Luther King e ao seu famoso discurso I Have a Dream. Esse sonho era o da concretização da crença da nação americana, escrita na sua declaração de independência, mas nunca realmente materializada: “Consideramos estas verdades como autoevidentes, que todos os homens são criados iguais.” Por isso ele depois acrescentava: “Eu tenho um sonho que meus quatro pequenos filhos um dia viverão numa nação onde não serão julgados pela cor da pele, mas pelo conteúdo do seu caráter. Eu tenho um sonho hoje.”

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Mais de meio século passado não é isto precisamente que todos defendem? Não, não é, mesmo quando parece que é.

Antes de Martin Luther King, séculos a fio (milénios?), houve a preocupação de dividir a humanidade em raças. Preocupação quando não obsessão. Só que depois do movimento dos direitos civis, e também de tudo o que a ciência nos permitira saber sobre as diferenças entre os diferentes tipos humanos, o novo mantra passou a ser “há apenas uma raça, a raça humana”. Por isso quando, em 2003, o genoma humano foi finalmente descodificado, recordo-me de ter feito uma capa do Público com o título “O genoma não tem raça”, e ainda hoje me orgulho disso. Até porque de então para cá a evidência científica não tem deixado de se avolumar no sentido de considerar que não fez mesmo sentido o conceito de raça.

Contudo, nas universidades americanas, onde os sinais dos tempos surgem sempre primeiro, é hoje anátema defender a ideia de “há apenas uma raça, a raça humana”. A Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) chegou mesmo ao ponto de distribuir instruções ao seu pessoal proibindo essa expressão ou outras semelhantes.

O conceito de raça, a raça como referência identificadora, e tudo o que só posso considerar como políticas racistas, regressaram assim pela porta dos fundos e pela mão das chamadas “políticas identitárias”. Estas caracterizam-se por definir identidades “oprimidas” e identidades “opressoras”. De acordo com as novas doutrinas, a sociedade é fatiada de acordo ora com reais problemas, ora com modas culturais, ora com simples agendas políticas. Em certos meios fazer parte de uma identidade “oprimida” tem imediatas vantagens pois ganha-se o estatuto de vítima que é necessário resgatar, mesmo que se seja um privilegiado, ao mesmo tempo que passou a ser motivo desqualificativo quase universal ser homem, branco e heterossexual (não estou a brincar: a paranoia chegou ao ponto de recentemente uma reportagem da Sábado sobre uma conferência em Portugal de Jordan Peterson procurar desqualificar a assistência por esta ser constituída sobretudo por “homens brancos”, como se no nosso país não vivessem sobretudo… brancos).

A divisão do mundo em “oprimidos” e “opressores”, “vítimas” e “carrascos”, estende-se aos descendentes, séculos e séculos passados, dos supostos actos de opressão, e qualquer resistência a um gesto de contrição é tido como uma manifestação de racismo. Foi assim que a visita de Marcelo Rebelo de Sousa a um antigo entreposto de escravos no Senegal, onde reconheceu a injustiça da escravatura, desencadeou uma polémica que teve por mote não apenas o Presidente, por este ainda “não ter descolonizado a sua mente”, como levou a um obsessivo exercício de torturar a história de demonstrar que Portugal foi a pior de todas as potências esclavagistas. Mais: o esforço para desconstruir a nossa memória colectiva dirigiu-se mesmo contra alguém que até esteve muito à frente do seu tempo na denúncia dos crimes do colonialismo, o Padre António Vieira. Principal animador da iniciativa? Mamadou Ba. Justificação? Porque ele entende que as minorias que vivem no nosso país não se reconhecem na história que lhe contamos, não se reconhecem nos nossos heróis, entendem que não fazem parte do nosso passado e, por isso, dizem-se excluídas.

Eu sei que não é fácil seguir os raciocínios que vão ligando estes pontos e levam da defesa dos “oprimidos” às politicas identitárias, das politicas identitárias à necessidade derrubar estátuas e rever memórias, e daqui passam ao discurso sobre a “racialização”, mas sei que num dia começamos por convencer a Conselho da Europa que temos livros escolares racistas (apesar de nenhum critério objectivo sustentar essa tese) e não tarda nada podemos estar a avaliar tons de pele ou a medir a grossura dos lábios para saber se alguém tem direito a um emprego, um ponto a que se chegou no Brasil no tempo do PT, numa extraordinária aplicação invertida de métodos utilizados na Alemanha nazi. Em nome de quê? De preencher as quotas destinadas às minorias e procurar satisfazer os seus discursos de vitimização.

Nas entrevistas que deu depois da polémica da “bosta da bófia” (como este), Mamadou Bá  tornou-se muito mais cuidadoso, mediu as palavras e até pareceu moderado. Ou seja, foi político. Chegou a parecer que defendia a polícia e só criticava os seus excessos, o que só pode ser hipocrisia se nos recordarmos que ele foi um dos 162 subscritores (sim, foram só 162) da petição pública de 2016 intitulada “Da Celebração ao Combate” e que defendia, entre outras coisas, “o fim imediato das operações do CIR (Corpo de Intervenção Rápida) nos nossos bairros, como primeiro passo rumo à abolição total da PSP e GNR, e sua substituição por mecanismos de garantia da segurança colectiva, baseados nas comunidades”. Vale a pena repetir: “abolição total da PSP e GNR”. Ou seja, da “bófia”. Ou seja, da tal força policial a que agora pede proteção – uma proteção que espero sinceramente que esses homens lhe garantam.

Como não sou dos que metem a cabeça na areia, sei que em Portugal há racismo como há em todas as sociedades humanas (o que daria uma interessantíssima discussão), mas há mais três coisas que sei e que são as que importa sublinhar hoje.

A primeira é que as políticas identitárias centradas na celebração do “oprimido” e na vitimização acentuam a segregação racial pois fazem da raça um critério central da vida social. Têm mesmo como consequência inevitável uma espécie de efeito boomerang já bem evidente nos Estados Unidos, onde nunca houve tantos brancos a considerarem que a branquitude é uma parte importante da sua identidade (são já 55% do total).

A segunda é que usar lentes que vêem racismo em todo o lado cria mais problemas do que resolve e tem pouca ou nenhuma adesão à realidade. Foi Mamadou Bá que fez dos incidentes do bairro Jamaica um caso de racismo, pois a comissão de moradores fez questão de dizer que o que lá se passou não teve nada a ver com racismo. Foram os activistas que mobilizou que vieram primeiro para o Terreiro do Paço e depois para a av. da Liberdade, onde não esteve praticamente ninguém do bairro, tal como na concentração em frente à câmara do Seixal só estariam uns cinco ou seis habitantes do Jamaica entre as duas centenas de manifestantes. Aquela não era a luta deles.

A terceira decorre das duas anteriores: os Mamadous Bás deste mundo têm tudo menos o sonho de Luther King de uma sociedade pós-racial, nas suas palavras inspiradas de “fazer chegar mais rápido o dia em que todos os filhos de Deus, negros e brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão dar-se as mãos e cantar as palavras da antiga canção espiritual negra: Finalmente livres! Finalmente livres! Graças a Deus Todo Poderoso, somos livres, finalmente.”

Sim, porque “dar-se as mãos” não faz parte do seu programa. O seu programa é antes cobrar-nos uma factura, apresentando-se-nos como vítimas. É para isso que precisam do racismo identitário.