Há coisas que não nos deveriam em caso algum surpreender, porque intelectualmente estamos preparados para elas, e que, no entanto, nos surpreendem sempre um bocadinho quando acontecem. Sabemos, por exemplo, que um louco é louco. Mas, face a um particular acto de loucura, encontramo-nos subitamente desprevenidos. A distância entre a expectativa mental e a reacção emocional adquire proporções inesperadas. Convém vivamente, nestes casos, pôr as coisas na ordem. Quer dizer, proceder à rememoração das causas passadas das nossas expectativas mentais e perceber que elas são perfeitamente compatíveis com a situação presente que nos provoca alguma surpresa. Mais: que a situação presente quase delas perfeitamente se deduz.

Vem isto, é claro, a propósito do PCP e da sua actual posição face à invasão russa da Ucrânia. Muita gente proclamou o seu desmesurado espanto com o facto de o PC adoptar como boa a interpretação russa dos acontecimentos e insistir que os principais fautores da guerra são os Estados Unidos e a NATO, que não passa de um seu braço armado. A própria palavra “invasão” queima os lábios e Jerónimo de Sousa – muito debilitado, é verdade – contorce-se para a evitar, permitindo-se apenas falar de “guerra”, e mesmo isto fazendo remontar a sua existência ao ano de 2014, deixando entender que a culpa da dita guerra cabe aos ucranianos pelos conflitos no Donbass. A líder parlamentar do PC, Paula Santos, diz, como não podia deixar de dizer, o mesmo. As sanções contra a Rússia e a cedência de armamento à Ucrânia representam o imperialismo em acção, num novo episódio da sua constante luta contra a paz, que desta vez se acompanha de um “pensamento único” engendrando uma “nova censura” e constantes “tentativas de intimidação”. Citei dois comunistas. Mas poderia acrescentar outros: Miguel Tiago e António Filipe, por exemplo. Mais: poderia – e isso é que é verdadeiramente interessante – citar todos sem excepção. Como se o PC possuísse uma única cabeça, uma mónada psíquica colectiva, que por todos pensa e cuja coerência pétrea se exprime numa linguagem invariável e inflexível, sem interstícios por onde entre a sombra de um pensamento que não esteja pré-programado desde o início.

Foi sempre assim, admito que com ligeiras variações que cabe aos historiadores estudar. Tomemos, por exemplo, a negação da invasão russa e do carácter voluntário desta. O PC passou toda a sua história a negar a existência do Gulag na defunta U.R.S.S. Ainda não há tanto tempo assim, a ex-deputada Rita Rato, agora directora, por ironia e amizade do PS, do Museu do Aljube, pretextava falta de informação sobre o assunto para não se pronunciar na matéria. Bernardino Soares não via nenhum sinal óbvio de totalitarismo no regime da Coreia do Norte. Digam-me o nome de um comunista e eu responderei imediatamente com a lista de vários factos históricos indubitáveis que ele passou toda a sua vida a negar. Em tempos em que a palavra “negacionismo” anda na boca de tanta gente, é surpreendente que o PC não se torne num caso de estudo privilegiado.

O PCP acompanha Putin na denúncia da natureza nazi do presente regime ucraniano. Nada de novo também aqui. O PC sempre usou a palavra “fascista” com uma extraordinária liberalidade. Do PS para a direita ninguém lhe escapou. E, à sua esquerda, os “aliados objectivos” do fascismo eram todos e mais alguns. Perguntem a quem andou pela extrema-esquerda nos anos 70, logo a seguir ao 25 de Abril. Na altura, o PC gozava de um estatuto autónomo face à extrema-esquerda: dizia-se “o PC e a extrema-esquerda”. Esta última, sobretudo a maoista, definia-se também contra o PC (os trotskistas, pelo seu lado, sonhavam ainda em servir de força casamenteira entre o PC e o PS, um casamento que os guindaria ao invejável estatuto de guias espirituais da revolução, através, por exemplo, da chamada técnica do “entrismo” – no PS francês, o caso mais célebre foi o de Lionel Jospin). Mas, fosse qual fosse a pinta do esquerdismo, ele era aliado objectivo do fascismo. Resumindo: toda a gente era fascista em Portugal fora do PC. Qual a surpresa de, por estes dias, os ucranianos serem, aos seus olhos, nazis?

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O PC continua a celebrar a “revolução russa” de Outubro de 1917 como o maior acontecimento da história da humanidade, porque daí data o nascimento do “Sol da Terra”, para usar as palavras célebres de Álvaro Cunhal. Hoje em dia, o Sol murchou e o PC assegura-nos que a Rússia se transformou num regime capitalista. Algo, no entanto, sobrevive do velho amor, e não é apenas o anti-americanismo que mobiliza as paixões. É difícil esquecer o lugar e o tempo em que fomos felizes e há uma velha chama que ainda arde e aquece o coração neste presente inóspito, mesmo que ela tenha a forma de Putin. Simplesmente, esta doce história repousa numa mentira fundadora. Não houve revolução alguma em Outubro de 1917. Houve uma, efectivamente, em Fevereiro desse ano – que foi destruída pelo putsch bolchevique de Outubro, que mergulhou a Rússia num dos mais gélidos universos totalitários de que há memória. Como Max Weber previu, a partir do ambiente sentido em 1919, “não é o florir do Verão que nos espera, mas, antes de tudo, uma noite polar, glacial, sombria e rude. Com efeito, aí onde nada existe, não foi unicamente o imperador, mas também o proletário, que perdeu os seus direitos. E, quando esta noite lentamente se dissipar, quantos viverão ainda, de todos aqueles que viveram a actual Primavera, de rosto tão opulento?”. Weber, segundo o relato por Karl Jaspers de uma tempestuosa conversa num café de Viena entre Weber e Schumpeter, via Outubro como conduzindo a “uma miséria humana sem equivalente e a uma terrível catástrofe”. Com um erro tão duradouro carregado às costas, com a participação na maior impostura histórica do século XX, como não perceber a consequência quase lógica, embora superficialmente paradoxal, do afecto do PC por Putin?

Este amor pela conquista do poder, saudoso da velha virilidade bolchevique, que desprezava os bons sentimentos, como Lenine aconselhava, e cuja última exótica encarnação foi Che Guevara, manifesta-se também caseiramente. Assim, quando o PC celebra o 25 de Abril – com um pezinho de dança poético: “viver Abril”, “respirar Abril”, etc. –, não é verdadeiramente celebrada a liberdade que o 25 de Abril propriamente dito, na sua híbrida génese, e quase involuntariamente, nos trouxe e que é uma causa justa da celebração da maioria dos portugueses. A liberdade que o 25 de Novembro de 1975 repôs no centro da nossa vida política. É sim aquilo que se lhe seguiu: o chamado PREC, isto é, a tentativa, felizmente frustrada, de instaurar uma ditadura comunista em Portugal. É o “processo revolucionário em curso”, o PREC, não o 25 de Abril, que os comunistas, como um todo, celebram: celebram, mais uma vez naquela linguagem que julgam poética, “o Abril que falta cumprir”. E tal é a diferença entre as duas celebrações que, num mundo ideal, elas deveriam ser objecto de distintas comemorações por distintas pessoas, a bem do pluralismo democrático.

Dir-me-ão que, particularmente no que respeita à invasão da Ucrânia, o PC não está sozinho aqui. É verdade. Várias criaturas, em abaixo-assinados ou a título de opinião individual, publicada ou não, andam muito perto da posição do PC. Ao ponto de, de uma maneira que não me lembro de antes ter presenciado, as posições de certa extrema-esquerda e de certa extrema-direita serem, para todos os efeitos, indistinguíveis.

Mas o caso do PC é de longe o mais interessante. E isso por uma razão que brevemente indiquei antes. Essa razão é que o PC funciona, no seu todo, como um autómato, uma espécie de mónada psíquica sem portas nem janelas por onde entre algo do mundo. E, como nenhuma harmonia pré-estabelecida organiza uma correspondência do seu ponto de vista com o conjunto dos outros pontos de vista sobre este mundo, tudo aquilo a que temos direito é a uma forma de solipsismo colectivo que persiste numa actividade pré-programada necessária, onde tudo se sucede sem frincha por onde entre a reflexão e a liberdade. No fundo, os que a eles se opõem ou os contradizem não passam de sombras irreais. Por mais que se dotem da aparência da realidade, são uma realidade falsa, sem pensamento – o que a história, pensam os comunistas, se encarregará de demonstrar. E esta convicção não esmorece face à ameaça do seu próprio desaparecimento. Pelo contrário, fortifica-se, com a força toda do desespero.

Sempre foi assim. Sempre teve, aparentemente, de ser assim. A um regime de mentira permanente, respondem, para o servir, com a prática da cegueira permanente. É nisto que temos de pensar quando cedemos à tentação humana da surpresa. Não há, de facto, motivo para que a ela cedamos.