Hoje todos são unânimes de que a liderança do vice-almirante Gouveia e Melo na condução da administração das vacinas em Portugal é, de uma forma geral, um sucesso. É perfeitamente compreensível. Em primeiro lugar, a logística foi uma invenção dos militares, por isso, existiria melhor profissional a cargo desta operação? Em segundo lugar, foi uma liderança independente e não política, o que confere solidez e credibilidade.
Por outro lado, não deixa de ser irónico este acordo em relação à competência de um militar, num mundo em que a liderança unipessoal e assertiva foi supostamente deixada de lado, os militares vistos como uma instituição do passado e a disciplina tomada como matéria de retrógrados e ditadores. Ora, não há nada tão eficaz numa crise como a disciplina e as ordens claras. E uma liderança forte, firme, inteligente e não por isso, menos empática. O mesmo afirmou que “é impiedoso com os malandros”, mas também não se cansa de afirmar que premeia os que cumprem e igualmente que a vitória também se deve à sua incrível equipa (“Este é um trabalho de 4000 profissionais”).
A literatura de gestão e comportamento organizacional tem estudado muito este fenómeno. Existiu um modelo de liderança com muita influência desde a inauguração dos Estados modernos, no século XV, e que foi a autoritária e despótica, a Maquiavélica. Taylor inaugurou a moderna gestão de recursos humanos no século XX e muitos têm estudado a forma como os líderes atuam e o que explica o seu sucesso e insucesso. Nos dias de hoje a liderança autoritária caiu em desuso, dando lugar à democrática. Hoje o líder não atua por simples autoridade do cargo, mas mais por mérito e pela autoridade da influência que granjeia. Por isso, a liderança é um ponto de chegada e não de partida, é alcançada e não herdada. Isto é uma evolução, pois caíamos no extremo de ter líderes “só porque sim”, ou porque eram de boas famílias, ou bem conectados, mas podiam cair no despotismo ou corrupção. É pela necessidade de “checks and balances” que os absolutismos não funcionam.
Mas, como em tudo, há problemas. Houve um tempo em que se abusou do poder, hoje abusa-se da “empatia”. Hoje não nos cansamos de ouvir as frases “tens de conquistar a tua equipa”, “tens de conquistar os alunos”, “tens de conquistar o teu filho”, o que é uma perversão da liderança. Em princípio, o líder é aquele que vê mais longe e tem mais experiência e conhecimento e também aquele que é o mais exigente consigo próprio e com os seus hábitos. Se nos guiarmos por aquela subserviência, como vamos melhorar os outros ou como existirão direções claras? Se todos somos líderes, qual o líder e o rumo? O horror que o mundo moderno trouxe à hierarquia, tão cara à instituição militar, trouxe o caos para todo lado. Líderes exaustos, equipas desmotivadas, sem rumo, em conflito. No modelo de Gouveia e Melo, não quer dizer que não se ouça a equipa, mas há decisões que têm de ser tomadas e unicamente o são pelo líder. É um género de síntese da liderança militar com os avanços que a humanidade e a gestão obteve nos modelos de liderança?
Existiram muitas correntes de pensamento sobre os modelos de liderança. Hoje os modelos muito em voga são os inspiracionais. Os que consideram a comunicação. A capacidade de inspirar outros com uma visão, palavras, ideias e comportamento. Entre os estilos distinguem-se três: a liderança carismática, a transformacional e a autêntica. O líder carismático é aquele que tem uma visão (“Depois, tenho ideias, desenvolvo-as e sou obsessivo”), está disposto a correr riscos pessoais para alcançar essa visão (“Sim, é o prazer do risco”), é sensível às necessidades do seguidor (“Sou super piedoso para as pessoas que fazem bem, erram, mas deram tudo”) e exibe comportamentos fora do comum: “A maior parte das pessoas que viveram comigo parte do meu percurso nunca conseguiram entender o que me motivava.(…). Ao longo da minha carreira, fui sempre notando que havia um medo que toldava os portugueses. Na Marinha, por exemplo, eu sempre quis fazer as coisas mais esquisitas, mais difíceis, porque achava que eram as mais interessantes. Mas sentia o receio nos meus colegas, que não arriscavam com o medo de poderem ser prejudicados na carreira”. Outros exemplos deste perfil de pessoa invulgar são as inúmeras histórias de “filme” contadas na entrevista dada ao Jornal Nascer do Sol, as suas criações tecnológicas e a forma como questiona o status quo sem medo de represálias, numa cultura burocrática e autorreferencial como a instituição militar.
No tema da comunicação, o vice-almirante pontua a dois níveis: o primeiro é na comunicação institucional, o segundo, na comunicação aberta com a equipa. No primeiro caso, o vice-almirante é uma pessoa que se dá bem com os meios de comunicação, conhece a envolvente mediática e os seus desafios, usa estratégias eficazes de comunicação, como o uso da farda militar, por exemplo (“Por exemplo: eu sou alto, visto uniforme, tenho voz de comando e sou assertivo”). Ou não fosse o almirante um ex-porta voz da instituição militar e com conhecimento das estratégias de impacto comunicativo.
No lado da comunicação com a equipa podemos perceber que, em vez de uma comunicação unidirecional e distante, envolve-se com a equipa e recebe os seus contributos (“Sou general de 3 estrelas e tenho colegas com a mesma antiguidade que não fazem os briefings que eu faço. Chegam, têm uma cadeira especial, toda a gente fica em sentido, todos muito formais. Eu gosto de me envolver”)
A liderança transformacional inspira os seguidores a transcender os seus próprios interesses para o bem das organizações e tem um efeito profundo nos seus seguidores. Em situações de crise como a que vivemos, o almirante não trabalhou sozinho, como afirmou, e, por isso, para o seu sucesso teve de imprimir um sentido e um propósito maior do que as dificuldades por que a equipa passou, a situação forçada e complexa que envolve vacinar um país inteiro. Este estilo é mais relacionado com a satisfação do funcionário, menores taxas de rotatividade, maior produtividade, menor stress e risco de esgotamento (Hetland, H. et al. 2007; Lowe, K.B. et al. 1996).
Finalmente, a liderança autêntica é baseada na confiança e na ética (Robbins, S.P. & Judge, T., 2009). Numa entrevista, usa duas vezes a palavra ética relativamente às operações militares e conta episódios em que se denota a sua inflexibilidade com “habilidosos” (“Mandei-o levar tudo para o paiol de mantimentos e fiz uma participação dele. Cheguei a descobrir coisas mais complicadas (…) Uns tipos que tinham uma organização que fazia faturas falsas uns para os outros”). Por um lado, há uma visão clara e assertiva e depois uma disposição para correr os riscos que acarretará essa posição vertical sobre os assuntos e situações.
Líderes autênticos partilham informação, incentivam a comunicação aberta e apegam-se aos seus ideais. A liderança antiética é baseada no poder, ao contrário, a liderança ética é baseada no serviço (“O poder só serve para fazer coisas”). A confiança é uma expectativa positiva de que outra pessoa não irá – por meio de palavras, ações ou decisões – agir de forma oportunista. Isso implica familiaridade e risco. As principais dimensões são integridade, competência, consistência, lealdade e abertura. A honestidade é delineada como a principal característica esperada num líder, por parte de um seguidor. A confiança e a confiabilidade dão acesso ao conhecimento e à cooperação. Falta de confiança numa empresa mina o sentido de objetivos comuns numa empresa e cada pessoa está a trabalhar na sua própria agenda e evita a partilha de informação. Isso reduz a produtividade. Um clima de desconfiança tende a estimular formas disfuncionais de conflito e retarda a cooperação (Robbins, S.P. & Judge, T., 2009).
Bibliografia
Hetland, H.; Sandal, G. M., Johnsen, T. B. (2007). “Burnout in the information technology sector: Does leadership matter?” European Journal of Work and Organizational Psychology, 16(1), 58-75.
Lowe, K.B, Kroeck, K. G., Sivasubramaniam, N. (1996). “Effectiveness correlates of transformational and transactional leadership: A meta-analytic review of the mlq literature“. 7(3), 0–425.
Nascer do Sol (2021, Junho). Entrevista ao Vice-Almirante Gouveia e Melo. Acedido a 27 de Julho, 2021.
Robbins, S.P. and Judge, T. (2009). Organizational Behavior. New Jersey: Pearson Prentice Hall.
TVI24 (2021, Maio). Entrevista ao Vice-Almirante Gouveia e Melo. Acedido a 27 de Julho, 2021.