André Ventura está muito indignado com o fim do corte de 5% nos salários dos titulares de cargos políticos, um corte aplicado em 2010 e que não tinha sido revertido até hoje. Num gesto de genuína comoção, o líder do Chega prometeu doar o excedente salarial que daí resultar e convencer os demais 49 deputados do partido a fazerem o mesmo. Tem todo o direito de o fazer, naturalmente. Mas era interessante perceber até onde está disposto a levar este exercício.

Por exemplo, André Ventura defende, pelo menos desde 2020, um corte de 12,5% nos salários dos políticos. A proposta foi agora chumbada no Parlamento, mas nada impede que os eleitos pelo Chega abdiquem dessa generosa fatia nos termos em que se preparam para abdicar dos 5%. Assim que receberem na conta, transferem para quem bem entenderem. Não faltarão instituições e associações a precisar de contributos e, convenhamos, 12,5% cedidos por todos os deputados do Chega (um parlamentar em regime de exclusividade recebe no mínimo 4.301,84 euros brutos) seriam seguramente uma excelente ajuda.

E porquê ficar apenas pelos 12,5%? E que tal se os deputados de André Ventura abdicassem de metade do salário só para darem o exemplo? Ou ficassem apenas com o salário mínimo e doassem tudo o resto? Afinal, se o grande argumento do Chega para recusar o fim do corte é que é inadmissível receber tanto quando há portugueses a viver “miseravelmente”, e que o corte é um gesto de “solidariedade muito concreto” para “com os mais pobres”, porquê parar nos 5%? Ou nos 12,5%? A solidariedade do Chega para com os mais pobres tem um limite?

Que se abdique de tudo, pois então. O que se exige é uma entrega franciscana até que a situação do país e dos portugueses se inverta. Se estar na política deve implicar um verdadeiro sacrifício, então que não se ponha uma percentagem como patamar máximo de entrega ao outro. Se é para ser, que seja a sério: que se abdique do salário, das ajudas de representação, dos motoristas e dos “privilégios vergonhosos” que os que andam à procura de “tacho” foram conseguindo nestes 50 anos de democracia.

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Claro que Ventura não está sozinho. Os deputados eleitos pelo PCP entregam parte do salário ao partido desde tempos imemoriais, de maneira a que ninguém seja beneficiado ou prejudicado por entrar no Parlamento. O Bloco de Esquerda voltou a aparecer a defender que, enquanto não acabarem todos os cortes da austeridade, o corte no salário dos políticos não deve ser revertido. Rui Tavares, por sua vez, prometeu criar uma bolsa de estudo com o remanescente que resultar do fim deste corte — não ter sido para criar mais um grupo de trabalho foi uma sorte.

E Marcelo Rebelo de Sousa, claro. A bater nos mínimos olímpicos em termos de popularidade desde que foi eleito, o Presidente da República esperou pelo fim da discussão do Orçamento do Estado — e já depois de o Chega ter feito o que fez na Assembleia da República — para dizer que, por ele, não aceitava nem mais um cêntimo. Já pouco surpreende, de facto.

A democracia tem custos. Pagar bem e condignamente aos nossos representantes é um deles. Se queremos atrair os melhores, os mais capazes e os mais competentes, temos de pagar melhor. Se queremos atrair aqueles que não dependem dos diretórios partidários para terem um emprego, aqueles que não têm medo de perder o lugar por desagradarem ao ‘chefe’, aqueles que não fiquem permeáveis a interesses sinistros de terceiros, se queremos atrair os mais livres, temos de pagar melhor. É assim em todas as áreas de atividade e não tem de ser diferente na política. Não pode ser diferente.

Dizer isto não implica que não se discuta o funcionamento dos partidos e o seu método de recrutamento, que deve ser discutido. Ou os mecanismos de exigência e de transparência a que estão sujeitos, que devem ser reforçados. Ou as regras de nomeação para cargos públicos, que são uma anedota. Ou, porque não, o número deputados eleitos e o sistema de representação, medidas que o Chega defende, por exemplo, e que merecem ser refletidas. Tudo pode ser discutido. Mas devemos sempre desconfiar dos que, bem-aventurados, estão dispostos a fazer um voto de pobreza pelo povo e em nome do povo. Não costuma dar bom resultado.