Desde a sua fundação, em 1974, que o PSD é um corpo político de duas cabeças ideológicas: a social-democrata e a liberal, uma mais à esquerda, próxima do PS, outra mais à direita, próxima do CDS. Essa disputa interna foi, nos primeiros anos da democracia, corporizada pelo próprio Sá Carneiro, que, tendo que manter o partido vivo e longe da ilegalização, foi fazendo oscilar o discurso entre «o socialismo não marxista» e fórmulas mais dissimuladas de índole liberalizante. Depois do golpe falhado de 28 de Setembro e consequente agravar da fúria revolucionária, Sá Carneiro viu o partido ser atacado de todos os lados, do PCP ao PS de Mário Soares, que acusavam o PPD de ser um partido da burguesia, de defender os interesses do grande capital ou (talvez até pior) de ser um partido liberal. Foi por essa altura que nasceu a ideia, proposta por Sá Carneiro, de que o PPD era afinal um «partido popular interclassista» e ainda a sugestão de que o partido teria intenção de se juntar à Internacional Socialista.

Com o passar do tempo, Sá Carneiro tornou-se mais assertivo e menos ambíguo, o que se revelou de forma mais evidente depois da sua pausa na vida partidária, por motivos de saúde, e após ter passado boa parte da sua convalescença com um dirigente do Partido Liberal (Almeida Araújo), entretanto ilegalizado. A divergência esquerda-direita, porém, manteve-se viva no então PPD, graças ao trabalho de vários dirigentes que foram liderando o partido na ausência de Sá Carneiro (e que, em bom rigor, foram também responsáveis por manter o partido na esfera da legalidade do PREC): Emídio Guerreiro, Mota Pinto, Jorge Sá Borges, a JSD e mesmo Marcelo Rebelo de Sousa. Boa parte do partido preferia a via da esquerda, que Sá Carneiro ia utilizando para se manter à tona, numa época em que o centro-direita, tão comum nas democracias europeias, era visto como ameaça fascista.

Curiosamente, o PPD nunca se afirmou como um partido centrista. Foi, durante algum tempo, um partido de meias-tintas, acusação que alguns sectores revolucionários lhe fizeram logo depois do 11 de Março. Depois desta tentativa de golpe e da cavalgada esquerdista que se lhe seguiu, e mesmo sem Sá Carneiro em Portugal, o PPD deu novo ar da sua bicefalia, a propósito da substituição interina do seu líder: por um lado, uma facção de pendor conservador e liberal, corporizada por Rui Machete, que servia de mandatário de Sá Carneiro; por outro, o grupo de Sá Borges, que defendia que o partido não devia hostilizar o PREC, mas antes fazer parte activa do processo revolucionário.

Terminando a sua convalescença, em Espanha, Sá Carneiro decide regressar e prepara duas entrevistas pedindo ao Expresso a sua publicação. Pinto Balsemão tê-las-á recusado por entender que o jornal não devia publicar entrevistas que não tivessem sido feitas por jornalistas da casa, embora haja versões que dizem que a recusa se deveu à sua discordância com aquilo que Sá Carneiro queria dizer ao país. As entrevistas acabaram por ser publicadas no Jornal Novo e no Tempo. Nelas, Sá Carneiro não poupava o MFA, denunciava o controlo do aparelho de Estado e da comunicação social, rejeitava frontalmente as nacionalizações, afrontava o Documento dos Nove, entendendo que o mesmo propagava uma linha marxista que o PPD não podia aceitar, apontava o dedo ao PS, a quem acusava de pactuar com os comunistas, e criticava duramente a direcção do seu partido, que era conivente com tudo aquilo que lhe parecia inaceitável.

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Sá Carneiro regressaria ao partido, mas as divergências permaneceriam. A última grande ruptura deu-se já em 1979, aquando da votação das Grandes Opções do Plano do Governo de iniciativa presidencial chefiado por Carlos Mota Pinto, militante do PPD. Parte do grupo parlamentar e vários militantes destacados desvincularam-se do partido (incluindo o fundador Magalhães Mota, Sousa Franco, António Rebelo de Sousa, Sérvulo Correia, Jorge Miranda, Rui Machete, Ernâni Lopes, entre outros), em discordância com a posição que Sá Carneiro queria assumir. A dissidência foi brutal, o que levou muita gente a acreditar no fim do PPD e mesmo na morte política de Sá Carneiro. Humilhado pelos seus, Sá Carneiro estava sozinho. Literalmente sozinho. Na biografia que lhe escreveu (edição Esfera dos Livros, 2010), Miguel Pinheiro conta que na manhã seguinte à dissidência Sá Carneiro chegou à sede do partido, onde teve a companhia solitária da sua leal assistente pessoal Conceição Monteiro, e recebeu apenas os seguintes contactos: de Pinto Balsemão, que lhe telefonou a perguntar se queria prestar declarações ao Expresso; de Francisco Lucas Pires, que ali se deslocou em solidariedade; e do PSD apenas uma presença: Pedro Santana Lopes. Nessa manhã, Sá Carneiro dirá a Snu Abecassis, ao telefone, que nunca tinha estado tão sozinho, mas nunca tinha tido tanta certeza de que tinha razão. Meses depois, liderando a Aliança Democrática, ia a eleições e ganhava com maioria absoluta.

A direita democrática e de pendor liberal teve na AD o seu primeiro grande momento de afirmação política e social. Depois da morte de Sá Carneiro e Amaro da Costa, a AD tentou sobreviver sob a liderança de Pinto Balsemão, mas já não havia cola que juntasse tantas sensibilidades, tantas divergências e tantos egos políticos. O país acabaria pela segunda vez desde o 25 de Abril a pedir ajuda financeira ao FMI e formar-se-ia o Governo de Bloco Central, uma coligação inédita e nunca repetida entre o PS e o PSD. Nessa altura, o CDS de Lucas Pires dava sinais de grande vitalidade política depois de ter criado um programa altamente disruptivo e ambicioso: «No Caminho da Sociedade Aberta: Objectivo 92», o resultado final dos trabalhos do grupo de Ofir. Porém, a ambição de ver o CDS chegar à liderança do centro-direita ou mesmo do Governo cairiam por terra depois de o PSD dar novo sinal da sua dicotomia ideológica. Parte do partido mostrava-se já contra o Bloco Central, através de uma facção, a Nova Esperança, de que faziam parte Santana Lopes, José Miguel Júdice, Conceição Monteiro, Durão Barroso ou Marcelo Rebelo de Sousa, então já mais distante da esquerda do PSD. Este grupo, que deu ao país três líderes do PSD, dois chefes de Governo e um presidente da República, foi fundamental para a vitória de Cavaco Silva – e esse momento, além de ter significado uma progressiva erosão eleitoral do CDS, a quem tirou o protagonismo na construção de uma alternativa, voltou a colocar o centro de gravidade do PSD à direita.

O centro-direita, em menos de 10 anos, perdeu duas oportunidades de grande afirmação política e social: a formação de um único partido resultante da AD de 1979/1980, primeiro, e uma coligação Cavaco Silva/Lucas Pires em 1985, depois. É verdade que o que se seguiu foi uma década de crescimento económico, resultado da adesão às Comunidades Europeias e respectiva torneira financeira, e do esforço liberalizador dos Governos de Cavaco Silva (que, não sendo um liberal, se deixou seduzir pelo thatcherismo do seu tempo). Mas a dúvida, pelo menos em mim, permanece: o que seria hoje Portugal se entre 1985 e 1995 tivesse sido aplicado o programa político do CDS de Lucas Pires em conjunto com a grande implantação social do PSD?

A verdade é que as maiorias absolutas do PSD deram também ao país, além de uma década de crescimento económico, um domínio poderoso do aparelho de Estado por parte do partido – um fenómeno exclusivo do PS e do PCP na infância da democracia, partilhado em parte com o PSD durante o Bloco Central e a que os social-democratas podiam, por fim, aceder de forma brutal e sem grande escrutínio. O cavaquismo foi um período de afirmação social e política de futuros e destacados dirigentes do partido e do país, mas foi também uma máquina de reprodução de pequenos e grandes caciques ancorados, directa ou indirectamente, na máquina do Estado, de videirinhos vários que viram na política e no partido aquilo em que se tornaram, progressivamente, os grandes partidos da democracia portuguesa: poderosas máquinas de tirar inúteis da irrelevância.

O PSD sobreviveria ao Governo do PS de António Guterres e à súbita e inesperada ida de Durão Barroso para Bruxelas. Durante esses períodos, as clivagens ideológicas do PSD, ocultadas em 1985 pelo exercício do poder e pela facilidade com que então se distribuía dinheiro e poder a rodos, mantiveram-se na irrelevância. Primeiro, porque durante o guterrismo se manteve a expectativa de que o regresso ao poder, consolidada a alternância democrática, era uma inevitabilidade. Segundo, porque durante o socratismo se tornou fundamental para o PSD derrubar um Governo que parecia ao mesmo tempo destruidor e indestrutível. A bancarrota de 2011 e a chegada ao poder de Passos Coelho recuperaram a batalha ideológica através de um argumento falacioso que se foi consolidando: o de que o PSD era um partido social-democrata e não liberal, o que estaria a ser posto em causa pelo Governo. Essa narrativa foi sendo construída por destacadíssimos militantes do partido: Manuela Ferreira Leite, Pacheco Pereira… ou Rui Rio.

O PSD escapou sempre à sua disputa interna mais ideológica graças ao poder, mas ela sempre existiu. Mesmo Passos Coelho conseguiu escapar a essa disputa, apesar dos muitos notáveis do partido mais ou menos abertamente contra o seu Governo e a sua liderança. Mas boa parte do partido nunca o aceitou; tolerou-o: porque o poder assim o ditava, porque as migalhas do poder ou a expectativa delas são óptimos silenciadores de dependentes partidários e porque aquela vitória estranha de 2015 deu a Passos Coelho uma espécie de aura messiânica, qualquer coisa de anjo traído pela conduta do inimigo (que, na verdade, tem causado mais prejuízo que benefício à reafirmação do centro-direita). Na verdade, à primeira oportunidade, o PSD não ficou a chorar por Passos Coelho e explicou o que na verdade queria: um partido mais à esquerda, menos liberal e, sobretudo, mais próximo do poder real. Rui Rio garantiu isso à militância do PSD, satisfazendo boa parte das várias sensibilidades internas, ora negociando com o Chega, ora aproximando-se do PS; ora aceitando as opções do PS, censurando-lhe apenas a gestão, ora anunciado um combate à subsidiodependência, piscando o olho ao populismo. E por isso tem ganho eleições internas de forma clara e inequívoca, de uma forma como, desde que é líder do partido, nunca ganhou uma eleição nacional (com excepção do laranjal madeirense, uma espécie de zona franca política): governa os Açores, sim, mas perdeu as regionais; recuperou câmaras municipais, sim, mas perdeu as autárquicas.

Depois do congresso do passado fim-de-semana, o PSD deu claros sinais de união em busca da conquista do poder. Cheira a alternância, talvez ela se venha a verificar, e isso garante partidos mobilizados e aparentemente unidos. Mas o que temos visto é, acima de tudo, discussão de táctica política, que é tudo o que representa o legado de Rui Rio desde que é líder do PSD. A alternância até se poderá verificar, não questiono isso. Mas ao PSD falta sobretudo ser alternativa. A alternativa que foi Sá Carneiro à hegemonia do PS e do PCP; a alternativa que foi Cavaco Silva ao Bloco Central; a alternativa que foi Passos Coelho à insanidade institucional, financeira e económica que foram os Governos de José Sócrates. Rui Rio, relegitimado pela vitória interna, atira agora ao PS: aponta-lhe as falhas, os erros, sim. Mas ninguém sabe o que esperar de diferente. Que reformas quer fazer? Como é que as quer implementar? Que ideia de país tem? Onde gostava de ver Portugal daqui a 10 anos e de que forma pretende lá chegar? Deste congresso ficou apenas a ideia de que o erro do PS é ser um mau gestor, e não de ter uma visão política global que o PSD julga errada. Talvez seja apenas a minha opinião, mas tenho isto como uma convicção: o poder até pode mudar de mãos a 30 de Janeiro; só que ainda ninguém percebeu de que é que isso nos servirá.