Nas últimas semanas e apesar da aparente estabilidade que resulta de sermos governados por um partido que sozinho tem maioria absoluta no Parlamento, assistimos, muitos com estupefação, à divulgação pública de notícias que põem em causa os pilares do nosso Serviço Nacional de Saúde, que todos sabemos que por orgulho nacional é um dos melhores do mundo e por crença ideológica está ungido com a marca da infabilidade.

Não querendo aqui cometer a heresia de negar que o nosso SNS é um modelo de virtude, quase que por capricho ele decidiu sinalizar por estes dias brechas precisamente onde a saúde abre as portas do Futuro – nas urgências neonatais e de obstetrícia. Nas Caldas da Rainha, no passado dia 8 de junho, uma mulher perdeu o bebé depois de ter entrado numa urgência onde os serviços neonatais estavam encerrados, devido a uma alegada falta de médicos. Já em Braga, um dos distritos do país onde historicamente a natalidade é mais forte, soubemos que o hospital – em tempos um dos mais bem geridos do país – fechou no domingo a urgência de obstetrícia, pois em vez dos necessários cinco médicos só estariam disponíveis para a escala do dia 12 de junho, quer de dia quer à noite, apenas dois especialistas. Parece que as dificuldades mais visíveis e mediatizadas sentidas nas Caldas da Rainha e em Braga estarão a acontecer um pouco por todo o país, e em surdina vai-se sabendo que são extensivas a várias outras especialidades.

Um pouco por aí não tardaram as reações dos acólitos de serviço que rapidamente se prestaram a minimizar o ocorrido, alegando que tal quebra se deverá seguramente a dificuldades pontuais associadas ao período festivo em curso, sabendo-se, como é sabido, que isto das urgências pode bem acomodar as arbitrariedades da sazonalidade festiva.

É bem verdade que já em Abril um amplo grupo de médicos do hospital das Caldas da Rainha havia difundido um manifesto denunciando uma “situação limite do ponto de vista de sobrecarga de trabalho e de qualidade assistencial” que seria “absolutamente dramática, desesperante e totalmente inaceitável”, mas isso, como nos ensinam os guardiães da pureza ideológica, são detalhes que apenas procuram desacreditar o SNS aos olhos dos cidadãos. Já o Hospital de Braga, que não obstante ter durante largos anos funcionado muito bem e agradado às populações, viu a sua parceria público-privada não ser renovada para não alimentar os famintos e pérfidos grupos de abutres capitalistas que querem fazer da saúde um “negócio”, e convida agora os nascituros que queiram vir ao mundo aos domingos a passarem a ter a maçada de nascerem em Famalicão ou Viana do Castelo, na certeza de que com esse pequeno sacrifício estarão a honrar a moralidade de um sistema que, sendo infalível, por vezes se esquece que existe, precisamente, para dar cobertura permanente às situações mais graves e urgentes.

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Pelo caminho, continuamos a ignorar todos os sinais, como se a ignorância das dificuldades ajudasse a tornar tudo muito melhor. Como no filme Adeus, Lenine, boa parte do país dedica-se a tudo fazer para esquecer que o Muro de Berlim há muito já caiu, e que lançar loas permanentes a soluções políticas caducas e tributar religiosamente a inércia do Estado está a levar-nos novamente até à rutura e, como já é sabido de tão repetido, à cauda da Europa.

No sábado passado, na CNN, o Presidente da Câmara Municipal do Porto, com a frontalidade que lhe é conhecida, e a propósito da transferência de competências do Estado Central para os Municípios, pôs o dedo na ferida – o Estado Social está à beira da falência e o status quo quer libertar-se das responsabilidades das reformas empurrando-as para as Autarquias. Sem talvez ter consciência, essa foi também a mensagem subliminar passada por António Costa quando anunciou o seu desejo de ver o salário médio aumentado em 20% nos próximos 4 anos. Ou seja, o mesmo Estado que resiste em atualizar os salários dos seus funcionários (os tais que abandonam em série os hospitais públicos para irem pregar para outras paragens), espera que o setor privado seja capaz de dar cumprimento ao sonho de termos uma sociedade mais equilibrada e justa. Faltou ao primeiro-ministro explicar como tal será possível, pois sem diminuição da carga fiscal ou alteração das condições da competitividade (recorda-se que na hora de alocar os fundos do PRR, Costa não foi tão generoso com o setor privado como espera que as empresas sejam com os seus trabalhadores), não se vê onde irão as entidades patronais inventar recursos para tão ambiciosa aspiração salarial.

Na obra clássica “Orgulho e Preconceito”, Jane Austen apresentou-nos o retrato de uma sociedade cuja única forma de mobilidade social oferecida às mulheres passava por negociarem bem os seus casamentos. A escritora britânica narrou-nos as histórias inspiradoras de várias mulheres unidas pela vontade de tudo fazerem para consolidarem um quotidiano estável a partir de casamentos onde, ainda assim, seriam elas a assumir o rumo dos seus próprios destinos. A ideia de que uma sociedade não é capaz de ir além daquilo que a bloqueia, empurrando grande parte da população para vidas sem esperança, a menos que alinhem em soluções tributárias de um status quo que captura a liberdade, que Austen tão bem representou, é algo que permanece, ainda, numa sociedade portuguesa onde todos os dias os cidadãos são aprisionados por um Estado assistencialista que falha permanentemente naquilo que são as suas funções, não obstante continuar a cobrar uma grande parte dos recursos por via dos impostos.

Só há Estado Social robusto em economias fortes, onde se dá prioridade à produção. Só há mobilidade social se as empresas – e não o Estado – forem o motor do emprego e os principais prestadores daquilo que a sociedade necessita. Portugal precisa de derrubar de vez os muros de Berlim que ainda existem na forma como estamos organizados. E perceber que em democracia parte da saída para as dificuldades passa precisamente por questionar tudo aquilo que sacralizamos. Portugal precisa de um novo Pacto Social, onde se equilibrem os objetivos sociais com a possibilidade de, como defendia Jane Austen, todos serem capazes de trilhar os seus próprios destinos. Com orgulho. Encontrando soluções sem preconceitos. E, de preferência, evitando novas falências.