A sete de janeiro de 2023, Vladimir Putin assistiu na Catedral da Anunciação à celebração do Natal ortodoxo. Numa capela onde tradição e turíbulos se envolviam numa atmosfera de transcendência que convidava à presença do divino, Vladimir Putin comungou na companhia de quatro sacerdotes a celebração litúrgica da natividade. A aparente solidão que as imagens transpareciam foi registada e comentada no Ocidente como um acto de isolamento mas também de alguma paranoia. As pessoas sorriram e pensaram – tem medo, não confia em ninguém! Que triste é passar um Natal só! Merece o isolamento!
A Ortodoxia
Quem isto viu nestas imagens que correram mundo está longe de conhecer a realidade russa e entender a ligação orgânica e espiritual entre o Kremlin e a Igreja Ortodoxa. Vladimir Putin é o incontestado líder secular da nação russa, mas é também, e na tradição Czarista, o símbolo da nação ortodoxa russa, um produto da simbiose entre poder secular, Igreja Ortodoxa e povo. É simbólica aquela imagem. É isso o que significa. Pouco importa o que nós ocidentais ali vemos, é uma mensagem para o seu povo, é uma mensagem para a sua Rússia.
A Igreja Ortodoxa, ou “Igreja da Glória Verdadeira”, surgiu em 1054, após o Grande Cisma ou Cisma do Oriente, com o qual a comunidade cristã ficou dividida em duas Igrejas. Uma sediada em Roma e outra em Constantinopla, com Miguel Cerulário a assumir o cargo de patriarca. Com os anos as diferenças entre as duas igrejas foram-se acentuando, e outras surgiram de novo. Os líderes de ambas excomungaram-se mutuamente e, de entre o que separava estes ramos da cristandade, o não reconhecimento da infalibilidade e da primazia papal, foram e são ainda os pontos mais relevantes da altercação.
Vladimir o Grande (980-1015) é considerado na Rússia como o responsável pela adoção oficial do cristianismo. Foi batizado onde hoje é a Catedral de S. Vladimr, em Kiev, e foi beatificado por ambas as Igrejas. Para a adesão à religião cristã, reza a história que uma delegação da Rus de Kiev se terá deslocado a Constantinopla onde ficou deslumbrada com o luxo das cerimónias e um ambiente que descreveram como uma representação “dos Céus na Terra”. Sugerem ainda alguns historiadores que a permissão do consumo de bebidas alcoólicas não deverá ter sido alheia à escolha.
Quando em 1054 ocorre o Grande Cisma, a Igreja do Rus de Kiev segue o patriarca de Constantinopla. E é nesta opção que se alicerçam muitas das diferenças entre ocidentais e os povos desse Oriente.
O não reconhecimento da infalibilidade nem da primazia papal criou as condições para que a Igreja Ortodoxa Russa tivesse autonomia eclesiástica e litúrgica. Dessa autonomia resultaram duas consequências que ainda se refletem nos nossos dias. A primeira é que acentuou o carácter conservador da ortodoxia que lhe esteve na génese. À sua maneira podemos vê-la como “fundamentalista”. Deste conservadorismo resultou uma impermeabilização aos princípios iluministas, que nunca conseguiram moldar as mentalidades naquelas estepes. Como conservadores encerram-se nas “suas verdades” e veem com muita desconfiança, senão com hostilidade, tudo o que a mudança possa trazer. Alguns Czares (Pedro o Grande, Catarina II, Nicolau II, entre outros) tentaram importar para o império alguma modernidade. Poder-se-ia pensar que com a intromissão da literatura, música, ciências e filosofia ocidentais, a sociedade russa ficasse mais disponível para os princípios de “Liberté, Egalité, Fraternité” do iluminismo. Mas não estavam. Nem a estrutura feudal em que os regimes Czaristas assentavam, nem a ortodoxia anquilosada da sua Igreja o permitia.
A segunda consequência da autonomia da ortodoxia russa e da sua igreja em relação a estruturas supranacionais, foi tê-la colocado mais disponível para interagir com o poder secular. Com maiores ou menores distensões, o poder secular e o espiritual sempre tiveram na Rússia uma aproximação de onde tiraram proveito mútuo num misto de dependência e domínio. Durante a época soviética esta aproximação foi quebrada, mas depois de um período jacobino de perseguição de sacerdotes e destruição de símbolos, e no rescaldo “bonapartista da revolução, o poder dos sovietes encontrou no metropolita Sergius alguém disponível para jurar fidelidade ao regime dos sovietes. Se as condições para a intromissão do poder secular na vida da Igreja já existiam, com este passo, a dependência estava facilitada. Contudo, e apesar desta submissão, durante a época soviética a religião foi das poucas coisas russas não infetadas pelo ateísmo de então.
Com a queda do regime soviético houve um período transitório de alguma independência, mas este foi de curta duração. Foi um tempo em que muitos sacerdotes transpuseram para dentro da igreja um estalinismo espiritual. Alguns vieram mesmo do KGB e do Komsomol. Não é assim de espantar que na era Putin a igreja se tivesse verticalizado ainda mais enquanto estrutura e entrosado de forma pétrea com o poder secular.
E esta promiscuidade não é figura de estilo. Em 2012, no mosteiro Danilov, Putin reúne-se com os líderes religiosos russos (cristãos ortodoxos, islâmicos, budistas e judeus). À época Putin já tinha cumprido dois mandatos como presidente e um como primeiro-ministro. Era difícil explicar porque voltava a ser candidato. Para contornar esta dificuldade o patriarca ortodoxo Cirilo disse: “tal como Deus tinha intervindo no Tempo das Dificuldades e tinha instaurado a dinastia dos Romanov, também tinha colocado Putin à frente dos destinos da Rússia em 1999 para a reabilitar do período caótico da era Gorbatchov e Yeltsin”. Estava assim aberto o caminho para as eleições de 2012 e um exercício posterior, num misto de ortodoxia, conservadorismo, populismo, desconfiança das elites, e uma aversão a tudo o que fosse liberal e ocidental. O liberalismo e o Ocidente eram apresentados como pecados e fenómenos anti Rússia. Putin e Cirilo estavam unidos.
Após a queda da URSS o estado russo deu liberdade religiosa à população, mas rapidamente reconheceu que o apoio desta estrutura poderia ser importante para a sua perpetuação no poder. A igreja ortodoxa apoiava o poder instituído e este através de legislação dava exclusividade à Igreja Ortodoxa na área do cristianismo. Impediu assim que católicos, protestantes e evangélicos fossem reconhecidos. Estava efectuado o pagamento. A exclusividade da ortodoxia. No retorno desta dependência, com o fim da URSS e da ideologia marxista-leninista, o estado russo ficou despido de valores ideológicos. A Igreja que sobreviveu à era dos sovietes preencheu essa lacuna, e forneceu-lhe a linguagem espiritual e ideológica necessária para o nacionalismo, xenofobia, homofobia e conservadorismo. No retorno, o Kremlin garantia-lhe a exclusividade num ambiente de um nacionalismo musculado.
Nesta simbiose, Igreja e Kremlin estão juntos e dão voz a uma narrativa em que o Ocidente não é apenas um inimigo geopolítico, mas é também um inimigo espiritual por albergar no seu seio uma cultura decadente e pérfida. Vencia a ortodoxia e a impermeabilização aos princípios iluministas. Desta luta, e desta união só há lugar para um líder, e esse é incontestavelmente Vladimir Vladimirovitch Putin. É por isso que se apresentou humilde, mas majestático, na Catedral da Anunciação.
A dança dos leques e a mentira
O mundo soviético, e agora também o universo russo, funciona com um compromisso, onde, como numa “dança de leques”, o cidadão se comporta como se soubesse a todo o momento o que as autoridades esperam de si. Nada está escrito, tudo deve ser intuído. Não se pode compreender este mundo de burocracia e espectativas sem se conhecer o trabalho de Yuri Levada e Lev Gudkov.
Yuri Levada, doutorado em filosofia e sociologia pela universidade de Moscovo, teve até 1988 uma actividade intelectual dificultada pelas autoridades que receavam que investigações na área da sociologia viessem a questionar as posições oficiais e o próprio “establishment”.
Durante o consulado de Nikita Khrushchev foram-lhe permitidos de forma controlada alguns estudos de opinião. Contudo, a sua posição contra a invasão da Checoslováquia rapidamente lhe trouxe dissabores e foi afastado do Pravda, onde era colunista. Na era de Leonid Brezhnev é incluído nas purgas que atingiram as universidades e em particular as das áreas das humanísticas.
Em 1988 durante uma época de maior distensão do sistema, e em colaboração com Lev Gudkov (jornalista, sociólogo e filólogo) e outros sociólogos, promoveu na Academia Russa de Ciências um seminário que se institucionalizou num centro de investigação da opinião pública russa. Este funcionou até 2003, altura em que “provando do veneno que investigava”, foi-lhe imposto uma direção mais “amigável” ao poder instituído. Estes investigadores não aceitaram o espartilho que as autoridades lhes impunham e passaram a investigar sem financiamento estatal. É assim que surge o Centro Levada. Levada morre em 2006, mas o seu trabalho foi continuado pelos seus colaboradores.
Os estudos destes investigadores são indispensáveis para se compreender a mentalidade e comportamento social do homem soviético, e mais tarde do homem russo. Temas como a caracterização do “Homo sovieticus”, e outros, como burocracia, nacionalismo, inquéritos de opinião e aferição da popularidade de algumas personalidades, foram áreas em que estas instituições e investigadores se destacaram.
De entre os vários inquéritos e estudos de opinião, a caracterização do “Homo sovieticus” é incontornável para se compreender a Rússia dos nossos dias. Este homem é um indivíduo incapacitado, privado de iniciativa, acrítico com o regime e consigo próprio. É alguém que espera (e exige) que tudo seja fornecido pelo estado. Para Levada e Gudkov o “Homo sovieticus” resultou do estado paternalista que invadiu todas as esferas da vida privada e que na URSS cresceu no rescaldo do medo e expurgos da década de 30. Tudo resultou do projecto que foi a edificação do estado social soviético. Uma pirâmide social em que os que estão na base conhecem quem são os líderes e são-lhes reconhecidos. Tudo se articula num misto de medo, impotência e obediência instintiva. O cidadão fingia ser um súbdito leal, e formava uma opinião pública com instintos gregários, e fobias de imagens permanentes de um inimigo ora real, ora imaginário. Este era o panorama de então, um panorama que estes investigadores, e uma década antes da queda da dissolução da URSS, achavam que estava a mudar. O regime era insustentável, tinham de acontecer mudanças! E ocorreram. Em 1991 dá-se a dissolução da URSS, e a sociedade pareceu abrir-se ao Ocidente.
Após quase uma década de corrupção, assimetria social, capitalismo selvagem e máfias, e eventualmente como resultado desse lado mau do liberalismo, este não se conseguiu embrenhar na sociedade. Fruto desta má experiência, mas também da ortodoxia política e religiosa, a sociedade russa resistiu e lentamente regressou à segurança que em tempos tinha tido. Ainda que para este retorno ao passado tivesse de entrar numa nova “dança de leques” bem satirizada na antiga piada soviética – eles fingem que nos pagam e nós fingimos que trabalhamos.
Levada e Gudkov detetaram este retrocesso quando repararam, entre outros factos, que na votação para a personalidade russa mais relevante de sempre, Josef Stalin surgia sistematicamente entre os três primeiros, quando não era o mais votado.
Surgia assim o novo homem russo que estes investigadores designam como “Homo astutus”, uma evolução do Homo Sovieticus, um homem que tolera o engano, e está disposto a ser enganado ou a enganar-se a si mesmo se for bom para si. É um homem criativo e engenhoso adaptado à realidade. Procura lapsos e lacunas no sistema, usa as regras do jogo em proveito próprio, e se conseguir, não tem dificuldade em contornar essas mesmas regras. É um homem se enquadra bem na palavra russa “Prisposoblenets” – aquele que é habilidoso, sabe o que pretendem de si e adapta sem dificuldade ou remorso as suas convicções e comportamentos às circunstâncias.
Há na Rússia actual momentos que nos parecem absurdos. Como conseguem os russos acreditar em narrativas sem qualquer lógica nem apego à realidade, é uma pergunta que fazemos frequentemente. Não sei se é exclusivamente por via da propaganda, mas indubitavelmente esta tem de ter um grande papel. E, ao contrário do que faziam os meios de propaganda na era soviética, que tomavam e impunham o absurdo como realidade, os meios de propaganda actuais não propalam factos ou teorias em que as pessoas não acreditam. Não inventam. Limitam-se a ir ao encontro do que são as suposições da população. Aquilo que a população constrói no imaginário para que a vida faça sentido. A perestroika e a glanost foram terapêuticas radicais contra este tipo de narrativas, com os dirigentes a porem a população em contacto com a realidade. A população recusou e lentamente regressou para um estado em que não queria ouvir nada que se desalinhasse da “sua verdade”.
Durante a época de Putin a realidade é explicada com “verdades” em que as pessoas acreditam. O primeiro destes episódios ocorreu com o acidente do submarino nuclear Kursk, em 2000, e em que morreu uma tripulação de 118 homens. Vinte e três destes podiam ter sido salvos se uma Rússia imperial não tivesse sido demasiadamente orgulhosa para recusar a ajuda externa. O sentimento oficial era o de orgulho numa nação que tinha como ambição liderar a humanidade. Quem assim se vê não pode aceitar ajudas de rivais, nem muito menos de quem considera inferior. Venceu a mentira de que tudo o que era possível ser feito o tinha sido, e os 23 tripulantes sucumbiram como danos colaterais de uma Rússia orgulhosa e imperial.
A segunda destas mentiras ocorreu em setembro de 2004 quando terroristas Chechenos fizeram reféns numa escola na cidade de Beslan, no norte do Cáucaso. As entidades oficiais nunca reconheceram a magnitude do problema e declaram um sequestro de 354 pessoas quando mais de mil estavam envolvidas. Do confronto entre as forças de assalto e os terroristas morreram mais de trezentas pessoas. A maioria eram crianças. As entidades oficiais nunca reconheceram a gravidade dos acontecimentos. Nem podiam. Reconhecer que em pleno território russo, forças chechenas eram capazes de um acto daqueles era reconhecer a impotência e a inoperância dos serviços de segurança. Era desacreditar o edifício de segurança em que todos queriam viver e acreditavam. A segunda mentira aí estava.
A terceira destas mentiras ocorreu durante a guerra do Donbas, quando a 17 de Julho de 2014 um míssil abateu o voo 17 da Malaysia Airlines, de Amesterdão com destino a Kuala Lumpur. Morreram as 298 pessoas que iam a bordo. Sabemos hoje quem disparou, qual o míssil disparado e de onde. Na altura as certezas de hoje não estavam tão firmadas mas os indícios eram já muito fortes. O discurso oficial russo veio sempre no sentido da dissimulação. As entidades oficiais e os seus canais oficiais dos media entraram numa “dança-de-leques” cujo objectivo era só o afastamento da verdade e a perpetuação da verdade russa. Vencia a terceira mentira. “A quarta” convive connosco diariamente.
A estética
Para os russos, a verdade é sempre um conceito subjectivo comandado por lealdades, preconceitos e interesses. A verdade, tal como a mentira, tem sempre uma lealdade, serve um dono. Tem um propósito. Esta verdade é um conceito estético. Cada um é livre de gostar da sua verdade. Não importam os factos, o que importa são a estética e as lealdades. A verdade é o que podemos fazer com uma mentira, ou, citando Nietzsche, a verdade é uma ilusão que nos esquecemos de ser uma ilusão.
Os russos têm uma visão do mundo a duas dimensões. Alguns, e são muitos, pretendem descrever essa visão conotando-a com o espírito russo. Para esses, há toda uma panóplia de adjectivos – bondade, humildade, religiosidade, proteção do lar, da família, da natureza, etc, que o definem. Mas são todos adjectivos de difícil comprovação e que podem ser aplicados em muitas sociedades. São adjectivos de todas as sociedades. A existir, e avaliando pelo comportamento nos dois últimos séculos, o espírito russo define-se pela negativa. É uma acérrima oposição a tudo o que é estrangeiro, ocidental ou liberal. Corresponde a uma visão do mundo a duas dimensões. Esta forma de representação da realidade e da verdade é a mesma que observamos na sua arte sacra, onde os “Ícones” são representados a duas dimensões. São uma representação do belo e do divino, deslumbrante é certo, mas sem espessura própria, tal como a sua própria maneira de ver o mundo.
A ortodoxia de novo
E a ortodoxia de novo porquê? Porque a Rússia é um país em que a adesão à religião ainda se encontra em expansão. Mais de oitenta porcento dos russos diz-se crente, o que seguramente se reflete na maneira de pensar e agir. Para além de causas geográficas, a forma como os russos veem o mundo assenta no milhar de anos em que a sua religião se afastou do “Ocidente”. Este afastamento criou uma aversão ao modo de pensar ocidental, e fê-lo quase sempre em conluio com o poder secular. Apoiaram-se mutuamente e hostilizaram-se sempre que algum Czar mais recetivo à modernidade parecia querer dar alguma abertura à sociedade. O interregno no período comunista, onde a religião foi perseguida, teve também um papel na construção da mentalidade antiocidental, mas foi um período relativamente curto quando comparado com mil anos de ortodoxia.