Temos primeiro de retirar, não a gordura, mas toda a cirurgia plástica da “análise do governador”, não caindo na tentação de nos concentrarmos nas mais variadas magias estatísticas e realidades alternativas e criativas, tão características nos discursos de Mário Centeno. E que, neste texto em concreto, desafia o primeiro lugar de António Costa enquanto “optimista irritante”.
Tirando então, e para já, o tom rosa, mais forte que o do mundo Barbie, desta inusitada análise, ficam as mensagens. E há duas muito importantes, uma para todos nós, cidadãos em geral, a outra mais enquadrada na batalha política. Comecemos por isso por aquela que nos pode afectar a todos no curto prazo.
O governador do Banco de Portugal acabou de nos confirmar que se avizinham tempos difíceis. “Num momento de possível mudança do ciclo económico (…)”, diz-nos o governador. E mais à frente avisa-nos que não está colocada de parte uma recessão. “O enquadramento económico (externo) mostra sinais de desaceleração e mesmo com dimensões recessivas. Os indicadores económicos da área do euro divulgados em julho não são animadores, mas o cenário em que evitamos uma recessão está ainda no centro das nossas avaliações”.
Mário Centeno aponta-nos assim para um segundo semestre – que já estamos a viver – bastante mais difícil e admite até que poderemos entrar em recessão. Para todos nós é a mensagem mais importante da sua análise. Temos de nos preparar para a eventualidade de uma recessão. “Não podemos ser apanhados desprevenidos, como tantas vezes aconteceu”, alerta.
Porque é que o governador decide quebrar a tradição? Nunca um governador fez uma “análise”, optando por transmitir as suas posições – em regra muito recuadas e discretas – nas publicações do Banco de Portugal e nas conferências de imprensa ou entrevistas. Mário Centeno podia esperar um mês, já que no dia 4 de Outubro é publicado o Boletim Económico com as projeções para a economia portuguesa e, nessa altura, poderia fazer estes alertas.
E porque é que, contrariando a sua tradicional perspetiva de “copo super meio cheio” e até o registo de toda a sua “análise”, resolve avisar-nos que há nuvens no horizonte da economia?
A interpretação benévola é que quer que nos preparemos para a tempestade que se avizinha, para, como diz, “não sermos apanhados desprevenidos”. Como esta atitude de nos avisar para os perigos da realidade é inédita em Centeno, como em geral nesta governação de António Costa, temos de fazer igualmente uma interpretação menos benévola.
E a perspetiva, digamos, menos simpática, é que o governador não nos está (apenas) a preparar, a nós, para os tempos difíceis, está sobretudo a proteger-se da correcção que vai ter de fazer, com elevada probabilidade, das previsões de crescimento da economia portuguesa. No Boletim de Junho o Banco de Portugal dizia que Portugal iria crescer 2,7% este ano o que, neste momento, parece já muito pouco provável.
Numas contas rápidas e usando os últimos números divulgados pelo INE, a economia portuguesa teria de crescer cerca de 3% neste segundo semestre (depois de uma subida de 2,4% nos primeiros seis meses) para se conseguir atingir a projecção de 2,7% que o Banco de Portugal fez antes do Verão. O que obviamente parece muito improvável face aos sinais de abrandamento da economia por via, quer das exportações de bens e de serviços, como do Investimento. E nesta segunda metade do ano é de esperar que o consumo privado também se comece a ressentir do efeito combinado da inflação e da subida da prestação da casa.
Mário Centeno, que foi sempre implacável com os desvios das previsões de crescimento de todas as instituições, incluindo o Banco de Portugal quando ainda não se tinha mudado para governador, vai agora beber do copo dos erros nas previsões. Como todo o economista, Centeno sabe que as previsões são falíveis especialmente quando há mudanças no ciclo económico, mas fez política com esse tema usando-o para atacar os seus pares que não pertenciam ao seu grupo político. Agora tenta proteger-se das criticas, dar uma racionalidade ao seu erro.
A segunda mensagem vai para todos os que andam a falar em “folga orçamental”, com Centeno a mostrar que não se consegue desligar das suas anteriores funções e daquela que considera ser a sua obra sem lhe ver os efeitos que teve na administração pública. Mas apesar de ir dando estes recados não teve, pelo menos ainda, coragem suficiente para colocar de novo o Banco de Portugal a fazer a análise das contas públicas.
Diz o governador: “A política orçamental deve continuar a orientar-se pela noção de que não se alterou aquilo que há cinco anos não era financiável. O peso da despesa permanente na economia continua acima de 2019, mas deve reduzir-se para garantir a sustentabilidade ao longo do ciclo económico.”
E assim ficou Fernando Medina a saber que na Rua do Comércio Mário Centeno receia que o ministro se deixe levar pelas pressões e acabe por abrir os cofres do Tesouro, deixando que se perca aquilo que considera ser o seu maior feito – o equilíbrio orçamental –, mas sempre a desvalorizar os efeitos do caminho que escolheu para lá chegar – a degradação dos serviços públicos.
Na versão benévola, Mário Centeno está a ajudar o seu sucessor Fernando Medina, dando-lhe força numa altura de elaboração do Orçamento e em que crescem os comensais que se querem sentar à mesa do Tesouro. Na versão menos boa, Centeno quer deixar já o aviso porque receia que Fernando Medina não seja capaz de se impor e vai deixar perder o seu, de Centeno, legado.
Claro que o governador também disse o habitual sobre as taxas de juro, em linha com o que tem dito o Governo. Por aí nada de novo, sabendo Centeno perfeitamente que pode dizer o que quiser que a decisão não passa pela sua opinião.
Retiradas as mensagens essenciais – do alerta de crise e de conselhos a Medina – e que podem explicar esta iniciativa inédita de um governador do Banco de Portugal, fica a designada “análise”. Como já nos vamos habituando nos variados discursos, antes deste governo ter entrado em funções vivíamos na era das trevas, de onde saímos a crescer em todas as frentes a partir de 2015 – desde que se juntem os números e certos, se desvalorizem os que não se ajustam à narrativa e se condene ao esquecimento as realidades negativas.
O retrato que Mário Centeno faz é seguramente de um país que não é aquele em que vivemos.
Na educação, por exemplo, esquece-se destes últimos anos de caos na escola pública, assim como omite a emigração de jovens licenciados. Quanto à redução do número de licenciados, trata-se, diz o governador, de “um desvio estatístico, sem sustentação socio-económica.”
Sobre o investimento público diz-nos que “tornou-se mais exigente e produtivo, sendo a capitalização da Caixa Geral de Depósitos um exemplo destacado”. Diz ainda o governador, a propósito do PRR, que “longe vão os tempos das rotundas”. Sim de facto, agora vivemos no tempo das ciclovias e passadiços, não se percebendo ainda muito bem que tempo nos vai dar o PRR.
E assim ficamos também a saber que afinal não houve uma quebra no investimento público para valores inferiores aos da era da troika, houve foi a decisão de se ser mais exigente. De tal maneira que Mário Centeno não repara no colapso dos serviços públicos em geral, na saúde, na justiça, na educação, nos transportes públicos ou na paciência que temos de ter quando precisamos de tratar de papéis e temos o azar de não encontrar aquele serviço que é exemplar.
Um governador do Banco Portugal deve ser independente do poder, deve esforçar-se por analisar a realidade de forma distanciada e não enviesada. Este esforço de distanciamento foi sempre uma marca mesmo em situações de maior tensão e de decisões difíceis na Rua do Comércio em Lisboa. Um deles foi protagonizado por Vítor Constâncio que tomou a decisão controversa de pôr o banco central a analisar as contas públicas primeiro, em 2002, a pedido do governo de Durão Barroso, e depois em 2005 a pedido do PS no governo de José Sócrates.
A “análise” de Mário Centeno não se pode considerar distanciada e independente. Resta-nos acreditar que o governador sabe que o país que retrata na sua análise não existe, que o governador sabe que está a ser tendencioso, que está a fazer política, que está a ajudar António Costa. O aviso de crise que nos deixa e o alerta para não se abusar nos gastos públicos são mensagens importantes que se perdem no retrato irreal que faz do país. Se o governador acredita nesse retrato é que temos um grave problema.