1. O ângulo político do PISA 2015 que interessa não é o de elevar Nuno Crato a único obreiro desta melhoria de resultados no PISA 2015 – uma posição absurda. O ponto político de relevo é que Crato foi um continuador de reformas que outros ministros de outros governos iniciaram, em particular quanto à apelidada de “cultura de avaliação”. Foi David Justino quem introduziu exame no final do ensino básico (9.º ano). Foi Maria de Lurdes Rodrigues quem elevou a parada, não só com a rotina das provas de aferição mas também instituindo mais avaliação para os professores (por exemplo, criando a PACC). Foi Isabel Alçada quem fez Portugal regressar à participação na avaliação internacional do TIMSS, após mais de uma década de afastamento. E foi Nuno Crato quem reforçou tanto a avaliação dos alunos (convertendo as provas de aferição em exames) como a dos professores (implementando a prova que a sua antecessora havia criado). Esta continuidade, mesmo que pouco reconhecida entre os partidos políticos, sustentou o caminho que Portugal percorreu nas avaliações internacionais nos últimos quinze anos e enquadrou muitas outras reformas.
Ora, por que razão os partidos à esquerda e os seus simpatizantes demonstram tanta resistência em aceitar esta continuidade reformista quando surge o nome do ex-ministro Nuno Crato? Porque, na avaliação de alunos e professores, o actual governo não rompeu só com Crato, mas com todo o legado político destes últimos quinze anos. A precipitada decisão pelas inéditas provas de aferição a meio de um ciclo de estudos (em vez de no final dos mesmos) exibe-o. A questão não é entre exames ou provas de aferição. É que, durante quinze anos, as provas em finais de ciclo permitiram avaliar a evolução dos alunos face a anos passados. Mas, agora, isso acabou. A deslocação da avaliação para o meio de ciclo, sendo inédita, impede qualquer comparação para trás. Sim, foi este governo quem fez tábua rasa da avaliação externa dos alunos. E sim, foi este governo quem inviabilizou a comparação estatística dos resultados, destruindo a utilidade de uma base de dados para a qual todos os ministros contribuíram ao longo de quinze anos. A verdadeira ruptura na avaliação do sistema educativo chegou em 2016.
Associar Tiago Brandão Rodrigues a uma ruptura com o caminho dos últimos quinze anos na educação não deveria espantar. Recorde-se que, nesse período, só dois ministros da educação cumpriram o seu mandato até ao fim – Maria de Lurdes Rodrigues e Nuno Crato. Recorde-se, ainda, que foram estes os ministros que, em resposta ao seu carácter reformista, foram alvo das mais intensas e radicais campanhas de oposição sindical, sucessivamente acusados de serem o rosto da destruição da escola pública – principalmente pelo que fizeram na avaliação de alunos e professores. E recorde-se, por fim, que os mandatos destes dois ministros estão associados às melhorias verdadeiramente significativas que os alunos portugueses evidenciaram no PISA, primeiro na edição de 2009 e agora na de 2015. Hoje, pela primeira vez em todos estes anos, os mesmos sindicatos que declararam guerra a Lurdes Rodrigues e Crato celebram a paz com Brandão Rodrigues. E isto deveria fazer soar os alarmes. Não por qualquer preconceito político, mas porque essa paz se construiu através do congelamento de reformas políticas na educação ou até a sua reversão. Eis, portanto, o maior alerta do PISA 2015 e que tantos recusam reconhecer: romper com a avaliação na Educação não é, como PS-PCP-BE publicitam, romper com o legado de Nuno Crato, mas sim com toda uma linha reformista que percorreu vários ministros.
2. A publicação do PISA 2015 abalou consensos estabelecidos no debate político em torno da educação – nomeadamente aquele que atribuía a Nuno Crato a autoria da destruição da “escola pública”. Não é por isso surpreendente que, nos jornais, o que se discuta à volta do PISA 2015 seja o papel do ex-ministro da Educação. E, nesse sentido, menos surpreendentes ainda são os esforços de muita gente à esquerda que, misturando ignorância e negação da realidade, tem procurado explicar a insignificância de Crato para a melhoria dos resultados – parece que, depois de tanta gritaria contra as suas medidas, afinal ter tido Crato ou o Rato Mickey no Ministério produziria exactamente o mesmo (bom) resultado.
Nada disto acontece por acaso. A defesa do actual projecto político na educação, baseado numa série de reversões de medidas, autojustifica-se com a impopularidade de Nuno Crato no sector. Como tal, esse projecto é por definição incompatível com a aceitação de que as medidas de Nuno Crato possam ter produzido algum impacto positivo no sistema educativo, como surge reflectido no PISA 2015. É uma questão de lógica: se se aceitar que existe esse impacto positivo, deixa de haver como legitimar politicamente a reversão das medidas. Daí que valha tudo para desvalorizar o papel de Nuno Crato, até ao ponto de jurar a sua irrelevância. Só que, como acontece sempre que se tenta demonstrar o irrazoável, as argumentações passam ao lado da realidade. Vale a pena destacar as três principais falácias.
Primeira falácia: observa-se uma tendência imparável de melhoria no PISA. Pedro Delgado Alves (PDA), deputado do PS, afirmou que as avaliações PISA “dão dados sobre a evolução a cada três anos e em cada três anos Portugal vai melhorando cerca de sete pontos em relação aos seus parceiros”, concluindo assim que “nenhum dos resultados aqui evidenciados é resultado directo da acção governativa anterior”. Ora, PDA não tem razão. É evidente que os resultados do PISA 2015 reflectem o desempenho de vários ministros e o contínuo trabalho de reforma do sistema educativo – por exemplo, na avaliação dos alunos, mas também no acesso ao pré-escolar ou na introdução de planos de incentivo à leitura ou à matemática. Mas daí a concluir que o impacto de Nuno Crato é zero vai um grande salto e uma série de pressupostos errados.
Desde logo, não é verdade que no PISA, a cada três anos, os alunos portugueses tenham melhorado cerca de sete pontos. Na verdade, a tendência de melhoria de Portugal não teve um ritmo constante, mas sim dois grandes picos (2009 e 2015), que é possível associar aos mandatos de Lurdes Rodrigues e Crato. Depois, é igualmente falsa a ideia de que a melhoria dos alunos é um dado adquirido, que nenhum ministro pode influenciar para melhor ou para pior. Não funciona assim. Por exemplo, entre 2009 e 2012, os resultados dos alunos portugueses no PISA estagnaram. Por exemplo, em vários países, os resultados do PISA 2015 evidenciam uma queda nos desempenhos dos alunos. Ou seja, por mais que algumas reformas demorem tempo a produzir resultados, a melhoria não se alcança simplesmente ficando à espera e navegando em piloto automático.
De resto, vale ainda a pena realçar a contradição inerente a este argumento. Há três anos, vários outros deputados – como Catarina Martins (BE) e Tiago Barbosa Ribeiro (PS) – previram o descalabro no PISA 2015 como consequência das opções políticas de Nuno Crato. Hoje, porque em vez de descalabro houve melhoria acentuada de resultados, desdobram-se em explicações sobre a irrelevância do ex-ministro. Fica evidente o critério: o impacto de um ministro nas avaliações internacionais só se verifica se estas confirmarem os preconceitos de que foi alvo.
Segunda falácia: os exames no ensino básico, introduzidos por Nuno Crato, não apanharam a larga maioria dos alunos que participaram no PISA 2015, pelo que esses exames não podem ser associados aos resultados do PISA 2015. O argumento foi lançado num texto de Nuno Serra e entusiasticamente reproduzido por Pedro Adão e Silva e por Daniel Oliveira, ambos no Expresso. O problema do argumento é que só conta metade da história. Sim, de facto, não há um efeito directo quanto aos exames, porque a maioria dos alunos do PISA 2015 não os realizou. Contudo, o que ficou convenientemente de fora do argumento é o que interessa: o efeito indirecto que a introdução de exames e o anúncio de maior exigência produzem sobre o comportamento do sistema educativo (de alunos, de professores e de pais). E isto tem um peso muito importante.
Não só apenas eu que o digo. Leia-se João Marôco, da direcção do Instituto de Avaliação Educativa (IAVE) e o coordenador nacional do PISA. Antes de mais, sobre a continuidade política entre Justino – Lurdes Rodrigues – Crato: “houve uma continuidade de políticas no sentido de uma maior exigência, rigor, competência, que deu frutos”, com destaque para os exames introduzidos por Justino e Crato. E sobre o resultado no TIMSS a matemática: “a verdade é que a existência de uma prova que conta para a avaliação final compromete os professores e também os alunos, que vão ter de trabalhar e esforçar-se mais e rever a matéria; creio que esta é uma das razões que ajudam a explicar a melhoria dos resultados a matemática dos alunos do 4.º ano no TIMSS”. Conclusão: elevando a percepção de exigência sobre professores e alunos, os exames tiveram mesmo um impacto indirecto (no PISA) e directo (no TIMSS).
Terceira falácia: os resultados melhoraram porque Nuno Crato excluiu os piores alunos do PISA 2015, “escondendo-os” no ensino vocacional. Este é o argumento da teoria da conspiração. E é a acusação lançada por Joana Mortágua (BE) e, surpreendentemente, por Fernando Medina (actual presidente da Câmara Municipal de Lisboa). O problema? A acusação é contrariada pelo “relatório nacional PISA 2015” (p. 18), elaborado pelo IAVE. Desde logo porque, na amostra do PISA 2015, a percentagem de alunos que frequentavam “áreas de formação e educação vocacionais ou profissionais” foi de 13%. Depois, porque esta percentagem é superior à da edição anterior, a do PISA 2012, quando o peso desses alunos correspondeu somente a 9%. Ou seja, não só os alunos fora do ensino geral não foram excluídos do PISA 2015 como até viram o seu peso aumentar na amostra.
Retomo, assim, o início. O que interessa aqui não é enaltecer Nuno Crato como único obreiro político dos resultados no PISA 2015 – não o foi. O que importa é realçar que o seu mandato se caracterizou pela continuidade e pelo aprofundamento de reformas que, antes dele, outros ministros começaram. Aparenta ser algo simples de reconhecer. Mas, sendo simples, não deixa de estar pleno de significado. É que aceitar isto implica admitir que, hoje, essa continuidade política de pelo menos 15 anos foi bruscamente interrompida.