Maria lembra-se de dobar com a avó. Talvez seja a sua recordação mais antiga. Iam às lãs ao senhor Belchior, uma retrosaria de vila nos arredores de Lisboa, entalada entre videoclubes tornados pastelarias e uma estação dos correios que deu lugar a um notário. Na sua ausência, a avó Teresa dobava com a ajuda de uma cadeira, sobre a qual se debruçava, de cotovelos suspensos no ar simetricamente, como se remasse uma canoa. Os novelos do Belchior serviram-lhe para duas décadas de cachecóis demasiado estreitos; camisolas largueironas para um marido toda a vida franzino; colchas que deixaram uma geração com os pés de fora. A avó de Maria morreu há cinco anos de ataque cardíaco.
No armário da sua casa de banho tudo está fora de prazo. Apanhando-me sozinha, abro-o como se espreitasse para dentro do quarto de um casal a meio da noite. Batons da década de 70; miniaturas de perfume a que o tempo trouxe tonalidades de malte, e um cheiro licoroso; escovas queimadas pelo secador, sujas de cabelo preto misturado com cotão; um lápis hemostático ainda de quando Armando (o marido) era vivo; iodo, rímel, pinça, um corta-unhas, comprimidos; espaços vazios. Borrifo debaixo da orelha um pouco de perfume, fechando-o logo, assustada, ao ouvir um barulho na canalização. Antes de sairmos, Teresa pede um instante para passar o batom e volta a entrar na casa de banho. Pela porta entreaberta, vejo-a do corredor reflectida no espelho, a que, por ver mal sem óculos, cola o nariz, embaciando a imagem. Arrastando-se para a porta como quem vai indo, surge mal retocada, deixando perceber que se esforçara por contornar os lábios. Devolve o batom à mala na qual, entre lenços de assoar e migalhas, encontra um centavo, uma chave solta, e um calendário de 97. O corredor cheira a uma ferrugem alcoólica, como se a trepadeira junto à porta da entrada tivesse sido regada com aguardente.
Paramos as três diante da montra. O Belchior anuncia a nova colecção Outono-Inverno: pijamas de homem, camisolas interiores e camisas de noite dobrados dentro de caixas de cartolina. Nas laterais, ceroulas e collants de lã presas com alfinetes num arranjo geométrico. Suspensos em fios de pesca pendem panos de cozinha e toalhas com motivos natalícios, alternadamente. Belchior continua a mudar a sua montra de quinze em quinze dias, equilibrado numa cadeira. Há tempos, caiu da cadeira e partiu o pulso. Deixou-se estar deitado na montra como uma marioneta desarmada, à vista de toda a gente. Foi a dona Estrela que o acudiu e chamou a ambulância. Tem a retrosaria há trinta e cinco anos; a Maria parece-lhe estar tudo na mesma.
Estamos dentro de uma das suas primeiras recordações. Diante de Belchior, que morreu há três anos e já não a reconhece (“Vocês agora crescem tanto”), Maria parece subitamente tristonha e sem palavras. “Deve ser do pó”, comenta Teresa, começando a espirrar. Certos lugares morrem com as pessoas que os animam. O que, acontecendo porventura desde muito antes de elas morrerem, não deve suscitar nostalgia. Talvez a imortalidade das pessoas adquira a forma dos espaços que, fora do coração dos outros, deixaram vagos — e que ninguém voltará a ocupar. É um pouco como se a brutalidade do seu desmantelamento não conseguisse escapar a vir a ser assombrada pelos Belchiores. Custa a crer que o trabalho de uma vida não chegue para gerar um fantasma. Entrar na memória engripa; deixa-nos de nariz entupido. Não por nos comovermos, mas porque nos começa a doer o corpo todo, e queremos enfiar-nos na cama.
Djaimilia Pereira de Almeida é autora de Esse Cabelo (Teorema, 2015).