Nas últimas semanas, vários comentadores, entre eles Miguel Poiares Maduro e Luís Aguiar-Conraria, têm vindo a levantar a hipótese da criação de um imposto extraordinário com o objectivo de redistribuir riqueza entre os Portugueses que não perderam quaisquer rendimentos com a crise sanitária (funcionários públicos, reformados, quadros de grandes empresas e empresas de ponta) e a multidão de descamisados que, de um momento para o outro, viu-se sem quaisquer rendimentos.
A entrevista de Susana Peralta, na passada Sexta-Feira ao jornal i, deu todo um novo fulgor à discussão, devido à utilização (feliz) da expressão “burgueses do teletrabalho”. Para fazer total justiça a Susana Peralta, cito directamente da entrevista para que se perceba o que é que a economista e professora universitária definiu como burgueses do teletrabalho: “uma parte substancial das pessoas em Portugal que não perderam rendimentos, toda a burguesia do teletrabalho, todas as pessoas do setor dos serviços que, aliás, são as pessoas mais bem pagas, o que também me inclui a mim”. Face a esta afirmação, acho que é lícito afirmar que Susana Peralta se referia a um imposto sobre as pessoas individuais e não sobre empresas ou sobre rendimentos de capitais. Faça-se ainda a justiça à entrevistada que, na mesma resposta, diz que os milhares de milhões que estão a ser colocados na TAP deveriam merecer uma reflexão mais profunda sobre as opções de políticas públicas do país. Interessa-me muito pouco a discussão terminológica sobre a burguesia do teletrabalho. Tal como Susana Peralta, sou um burguês do teletrabalho e penso saber a imagem que a entrevistada tinha em mente quando articulou a ideia de imposto extraordinário como medida de redistribuição.
Todavia, como burguês do teletrabalho estou absolutamente sossegado que o Dr. Costa não lançará qualquer tipo de imposto extraordinário sobre os nossos rendimentos. O Dr. Costa aprendeu com o governo de Passos Coelho que, aconteça o que acontecer, há duas bases eleitorais em Portugal nas quais não se toca: os funcionários públicos e os reformados. A burguesia do teletrabalho a que Peralta se refere consiste, no fundamental, em funcionários públicos altamente educados e com bons rendimentos, o embrião de classe média criada de cima para baixo pelo Estado e pela democracia pós-25 de Abril. Para além destes, existem, naturalmente, um conjunto de empresas privadas cujos funcionários se encontram nesta categoria. Estas empresas são maioritariamente rentistas e preparam-se para receber os milhões da bazuca Europeia, o que lhes permitirá sobreviver relativamente incólumes à crise. É certo que existem bolsas de riqueza criadas de baixo para cima, e fora da órbitra do Estado, que fazem parte da burguesia do teletrabalho, mas infelizmente são manifestamente diminutas e pouco importantes eleitoralmente.
Mesmo que isso signifique o aumento das desigualdades em Portugal, o Dr. Costa nunca lançará um imposto sobre a burguesia do teletrabalho. Um estudo recente de João Cancela e Pedro Magalhães deixa-nos algumas pistas sobre isto. Entre 2011 e 2019, houve uma alteração nas bases sociais dos partidos. Depois do governo de Passos Coelho, a direita perdeu apoio, de forma substancial, entre funcionários públicos e, acima de tudo, reformados, os quais, de resto, são muito úteis eleitoralmente uma vez que tendem a abster-se menos. É certo que a direita cresceu entre os sectores mais educados e dinâmicos da sociedade Portuguesa. Porém, isso não chega para ganhar as eleições. As elites Socialistas sabem que a clientela fiel entre os funcionários públicos e reformados, que seriam maioritariamente atingidos pelo dito imposto extraordinário, é indispensável para manter o partido no poder.
A ausência de um imposto extraordinário sobre a burguesia do teletrabalho é ainda explicado por movimentações claras na Europa de que a política expansionista está para ficar. Para além da retórica de Bruxelas, importa ter atenção à política interna Alemã. Em Janeiro, Helge Braun, chefe de gabinete de Merkel e do círculo mais próximo da chanceler, lançou as bases do debate público para a retirada do travão da dívida pública da constituição Alemã. Apesar de ser uma proposta com um caminho tortuoso e de resultado incerto, conta desde já com o apoio do SPD e, acima de tudo, dos Verdes que, muito provavelmente, poderão entrar em coligação com a CDU a partir de Setembro. Será o último grande serviço que a chanceler Alemã presta à Europa antes de se retirar da vida política. As mudanças internas na Alemanha sinalizam claramente que o dinheiro Europeu continuará a chegar em quantidades generosas a Portugal e que, ao contrário de 2008/2009, é muito improvável que haja uma inflexão súbita na política Europeia com ordens para adoptar uma política de austeridade.
Devido à falta de incentivos eleitorais e ao quadro externo favorável que permitirá continuar a canalizar o dinheiro Europeu para uma região que está a tornar-se cada vez mais o Alabama da Europa, o Dr. Costa não lançará qualquer imposto extraordinário. Enquanto houver eleições para ganhar, a desigualdade pode esperar. A burguesia do teletrabalho (ainda) tem futuro histórico em Portugal.