A propósito da Covid, temos vindo a assistir a um debate excessivamente numérico e estatístico sobre a necessidade, utilidade ou proporcionalidade das medidas que a esse propósito vêm sendo adoptadas, algo que me parece desviar o foco daquilo que, verdadeiramente, significa a imposição de um confinamento e o que tal significado implica face aos dados conhecidos: o Estado não tem legitimidade para oferecer sacrifícios humanos.

Todos os anos, por altura da aprovação do Orçamento do Estado, um número considerável de portugueses é deixado fora da cobertura do SNS (Serviço nacional de Saúde). As restrições orçamentais impõem limites ao número de pessoas que o SNS pode atender e salvar, mas não implicam, em si mesmas, uma qualquer opção de sacrificar alguém: a morte ou o sofrimento não são uma consequência directa de uma imposição do Estado, quando muito, a consequência indirecta da sua não intervenção.

Os confinamentos implicam algo muito diferente. Nestes, o Estado escolhe sacrificar uma parte da sociedade para tentar salvar outra. Na opção pelo confinamento, o Estado não se limita a escolher não salvar alguém, antes toma uma opção, deliberada, de conduzir uma parte da sociedade à reclusão, miséria e mesmo morte, para assim tentar salvar outra.

Visto o confinamento desta forma, ficará mais fácil entender as exigências e limites que se devem ter com o constitucional do estado de emergência e com as restrições que, no seu âmbito, se pretendem impor. Com efeito, porque o confinamento implica uma radical alteração da ordem social estabelecida, porque implica a supressão de relevantíssimos, e mesmo vitais, direitos das pessoas, porque implica uma opção por condenar uns em detrimento de outros, o mesmo só poderá ser decretado em face de inequívocas certezas e de colossais vantagens: não se condena ninguém sem certezas absolutas e sem provas irrefutáveis.

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A ponderação entre aqueles que intencionalmente sacrificamos e aqueles que nos propomos socorrer, obriga a que, de forma clara, saibamos quem são uns e outros, quantos são uns e outros e em que medida uns justificam os outros. Não podemos fazer como algumas culturas do passado em que se sacrificavam vidas humanas em troca de resultados indefinidos, incertos ou longínquos. Exceptuando uma situação de guerra justa, não me consigo lembrar de qualquer outra circunstância em que se possa conceber a legitimidade do Estado para impor sacrifícios humanos em benefício da sociedade.

Em todo este largo período de tempo que levam os confinamentos, não há uma única linha escrita, num qualquer diploma legal, a justificar as opções tomadas, o porquê de se optar por sacrificar quase todos em benefício dos alvos escolhidos pela epidemia, a sopesar os sacrifícios impostos face aos benefícios alcançados. Sucede, que sem uma clara ponderação entre os sacrifícios previstos e os benefícios pretendidos, sem uma expressa ponderação sobre a medida de cada um deles, jamais teremos um critério para avaliar do acerto das opções feitas. Pior, ficará difícil estabelecer qualquer exigente critério, ou medida, para futuros confinamentos: uma qualquer previsão de excesso de mortalidade bastará.

O Estado tem o dever de tudo fazer para tentar controlar a pandemia e assim salvar as vidas por ela atingidas, mas não tem legitimidade para, com esse propósito, oferecer outros sacrificados em benefício dessas vidas. Só uma ponderação com resultados esmagadores poderia, eventualmente, legitimar uma opção política de confinar. Ora, não parece haver nos números apurados, ou mesmo no seu triplo, um fundamento evidente que autorize o Estado a sacrificar vidas humanas. Menos legitimidade existe, ainda, para o Estado optar por um outro padrão de letalidade diferente daquele que é o padrão “benigno” seguido pelo vírus: o de que a idade nos tira anos de vida.

Caso fosse legítima a escolha de confinar, ou de confinar por todo este tempo, tal obrigaria a compensar aqueles especialmente e anormalmente sacrificados, algo sobre o qual, também, não há uma linha escrita e, pior, uma verba consignada. Qual é a compensação, directa e substantiva, atribuída aos comércios que foram ordenados encerrar e às pessoas proibidas de trabalhar? Não falo de minudências compensatórias do género daquelas a que temos assistido, mas de substantiva compensação pela imposta perda de rendimento, ou de capacidade de sustento. Dir-me-ão que não há dinheiro para isso. Eu respondo que se não há dinheiro, então a solução de confinar não é mesmo possível, mesmo que fosse legítima.

Sem legitimidade para escolher quem sacrificar e sem dinheiro para o poder fazer, a difusa justificação para as sucessivas medidas de emergência é a de que temos que evitar a todo o custo o colapso do SNS (Serviço Nacional de Saúde). Da inicial necessidade de se aplanar a curva, para dar tempo ao SNS para se reorganizar, passou-se para a necessidade de se aplanar todas as curvas, para nada ter de se fazer no SNS. É por isso que em vez de anúncios diários de reformas e de reforços no SNS, assistimos a diários anúncios de novas restrições ao funcionamento da sociedade. No meio disto, esquecemo-nos que o SNS existe para ajudar a manter a sociedade aberta e funcional, pelo que fechar esta para manter aquele aberto é uma contradição nos termos.

Mas é pior. Este argumento de tudo fazer para manter o SNS aberto passou, na verdade, pelo seu generalizado encerramento. Os centros de saúde estão largamente inoperacionais, deixaram-se de fazer largos milhões de consultas, exames e análises e tudo o que não seja agudo foi adiado. O objectivo de manter aberto o SNS descambou, afinal, na modesta opção de manter abertas, e sem restrições, as Unidades de Cuidados Intensivos (UCI) do SNS.

O argumento de se tentar evitar o colapso do SNS não serve, portanto, para explicar a opção política de confinar e menos ainda para a legitimar.

A catástrofe a que assistimos não é a do número de mortos Covid que, apesar de tudo, segue dentro de conhecidos padrões e de acordo com um natural e desejável critério de idade. A verdadeira catástrofe está em oferecermos (por decreto) sacrifícios humanos, em doses de holocausto, para apenas tentarmos salvarmos outros humanos.

Isto dito, reconheço a gravidade do problema e a seriedade da ameaça, mas não vejo legitimidade para impor o confinamento, a possibilidade económica de o fazer e mesmo justificação para o seu propósito: fechar a sociedade para manter aberto o SNS e acabar por fechar o SNS para manter abertas as UCI. No meio destes equívocos, deixámos de implementar as medidas alternativas ao confinamento que, verdadeiramente, poderiam ajudar a assegurar a operacionalidade do SNS e a protecção dos lares.