A obrigação dos proprietários limparem os matos e florestas é substancialmente mais reduzida do que aquela que vem sendo publicamente anunciada. A obrigação de limpeza que exista será, em muitos casos, passível de ser indemnizada ao proprietário.

Tem vindo a ser alertado, pública e ruidosamente, que os proprietários de espaços rurais (espaços florestais e terrenos agrícolas) com edifícios, ou com estes confinantes, têm que proceder a uma limpeza de combustível numa faixa de terreno com largura até 50 metros a partir da alvenaria exterior do edifício.

Sucede que uma leitura atenta e gramaticalmente correcta do normativo relevante nesta matéria (artigo 15º, nº 2, do Decreto-Lei n.o 124/2006, de 28 de junho – Sistema de Defesa da Floresta contra Incêndios) diz coisa bem diversa e muito mais circunscrita. Vejamos então, o que é ali é realmente dito:

“Os proprietários, arrendatários, usufrutuários ou entidades que, a qualquer título, detenham terrenos confinantes a edifícios inseridos em espaços rurais, são obrigados a proceder à gestão de combustível, de acordo com as normas constantes no anexo do presente decreto-lei e que dele faz parte integrante, numa faixa com as seguintes dimensões: (…)”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Ou seja, quando haja um edifício inserido em espaço rural, então os detentores dos terrenos confinantes estão obrigados a proceder à gestão de combustível.

Não resulta desta disposição, como erradamente se vê anunciado, qualquer obrigação de limpeza de terrenos para os próprios detentores de edifícios inseridos em espaços rurais, relativamente ao espaço envolvente a esses edifícios, mas antes e apenas para os detentores de terrenos com estes confinantes. O proprietário de um terreno florestal com edificação nele inserida não tem de fazer a limpeza do combustível à volta da sua própria edificação. Terá sim que fazer a limpeza nas ditas faixas de 50 metros de largura, na hipótese de haver edificações em propriedades confinantes com a sua.

Não resulta também desta disposição legal qualquer obrigação para os detentores de terrenos inseridos em espaços rurais relativamente a edifícios com estes confinantes, quando tais edifícios não estejam inseridos em espaços rurais. Refiro-me ao vulgar caso da existência de um edifício, sem qualquer floresta, mas encostado a um qualquer terreno florestal, situação da qual não resulta para o detentor deste terreno florestal qualquer obrigação quanto ao edifício confinante.

Conclusão: As obrigações dos detentores de espaços rurais são, portanto, menos do que se anuncia.

Confrontados com esta disparidade, o mais natural é ser-se tentado a recorrer a uma qualquer operação interpretativa ou integrativa, com vista a “salvar” a redacção da norma, dando-lhe o sentido que tem vindo a ser publicamente anunciado. Sucede, porém, que se está a falar de restrições a um direito fundamental, como é o direito de propriedade, assim como de matéria que é passível de uma actuação contra-ordenacional. Estas circunstâncias restringem muito a possibilidade de operações interpretativas ou integrativas.

Refira-se ainda que a circunstância de a obrigação de limpeza derivar da existência de um qualquer edifício em terreno confinante irá levar, certamente, a uma elevada conflitualidade acerca da legalidade de tais edificações, assim como a uma obrigação acrescida para os municípios de ordenarem a demolição daquelas que não estejam licenciadas (e que com esta lei já não serão mais legalizáveis). Pode bem acontecer, portanto, que uma ordem de limpeza de uma faixa de floresta acabe, afinal, numa ordem de demolição de um edifício vizinho.

Há ainda uma dificuldade adicional: de acordo com a própria lei, a obrigação da limpeza constitui uma servidão administrativa e, nessa medida, nos termos do Código das Expropriações, o proprietário poderá ter direito a ser indemnizado. Tal levantará entraves judiciais aos mecanismos expeditos para a posse administrativa dessas propriedades com vista à substituição do proprietário na limpeza. Os direitos dos proprietários são, portanto, mais amplos do que se imagina.

Esta questão da servidão administrativa vai levantar ainda um número incalculável de outras situações jurídicas complexas e de difícil resolução, como será, por exemplo, o caso de a edificação que imponha a obrigação de limpeza ao proprietário confinante ser de valor inferior à desvalorização que sofra a propriedade que deva ser limpa (serviente).

Este enorme problema com as servidões administrativas, que uma interpretação maximalista da norma como a que tem vindo a ser publicamente feita agrava, ficaria atenuado com a interpretação mais circunscrita que aqui se deixa, limitando as obrigações próprias dos detentores de espaços rurais, os potenciais conflitos e as indemnizações por servidões administrativas.

Não obstante os eventuais problemas e dificuldades da lei, tal não deve servir para que os proprietários deixem de fazer uma adequada limpeza dos combustíveis das suas propriedades, ainda que não aquela que as autoridades, sem suporte legal, pretendem impor.

Sócio da SGOC – Sociedade de Advogados, RL