Não sei se a “estratégia” de Trump na Síria é “brilhante”, como o próprio, sem medo do auto-elogio, se apressou a classificá-la. Talvez seja, vista de algum ângulo. Mas na medida em que a retirada das tropas americanas do norte da Síria deixou os seus aliados curdos à mercê dos ditadores Erdogan e Assad, a “estratégia”, antes de ser “brilhante”, começa por ser “vergonhosa”. É verdade que o presidente americano tentou depois compensar o abandono com ameaças de ópera cómica ao ditador turco, e que fosse por essa razão ou por pressão russa, não aconteceu até agora o massacre que se podia recear. Mas não é por não ter as piores consequências, que uma traição deixa de ser traição. Os curdos na Síria serviram de infantaria aos EUA na guerra ao Estado Islâmico. Para Trump, não é o equivalente a ter combatido na Normandia em 1944. Não será, mas os curdos lutaram mais do que pela sua própria sobrevivência. São um dos povos mais atraiçoados do mundo — a maior nacionalidade a que, nas divisões do Médio Oriente, nunca correspondeu qualquer Estado. Mereciam desta vez um pouco mais.

Nada disto é, porém, de espantar. Trump fez na Síria o que parecia tentado, há uns meses, a fazer no Afeganistão, onde, para garantir mais uma retirada, deixou de fora os seus aliados afegãos em negociações bilaterais com os Taliban. Esta atitude não começou, aliás, com Trump. O actual presidente prossegue simplesmente a ânsia de desertar e de se abster que já definira a presidência de Barak Obama. Na Síria, Obama portou-se tão mal ou pior. Incitou a rebelião, para depois a deixar sem apoio; e desenhou “linhas vermelhas”, para depois as deixar pisar.

De facto, este tem sido um dos aspectos mais repugnantes da política americana e ocidental desde a Segunda Guerra Mundial: o modo como repetidamente, no resto do mundo, as potências ocidentais criaram expectativas, comprometeram muita gente, para depois trair e abandonar aqueles que tinham tomado o seu partido. Foi assim no Vietname, onde os EUA, em 1975, privaram a República do Vietname do Sul dos meios para se defender da invasão comunista. Foi assim em quase todas as descolonizações europeias. Na Argélia, em 1962, a França entregou milhares de soldados árabes do seu exército à vingança sanguinária do novo governo. Na Guiné, em 1974, Portugal, num dos episódios mais indignos da sua história, fez o mesmo com os comandos africanos do exército português.

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