1 Não se pode olhar os dias com indiferença. Estes dias. A implacabilidade da realidade dá-se mal com a indiferença ou com essa forma superior de cegueira que é o disfarce: não há nada para disfarçar. Quarenta e sete anos depois do célebre Abril, Portugal, endividado e sem sustentabilidade económica confiável, é hoje – quase, quase – o “ anão” da UE. Quatro décadas libertadoras depois, em vez de se desenvolver crescendo, o país sobrevive na espera do dinheiro dos outros. As notáveis melhorias e os avanços operados em mais de quarenta anos foram obviamente bem vindas na sua indispensabilidade. E as – reais – bolsas de crescimento e desenvolvimento em algumas estações da democracia, também, ou ainda mais. Mas o ímpeto reformista e o rigor nunca foram mais fortes que o resto (o resto é a nossa particular idiossincrasia para um crónico desgoverno, intervalado com a meia dúzia de portugueses “providenciais” que ao longo dos séculos usaram dos bons instrumentos no governo da casa mas dou-me melhor com cidadãos normais que façam aquilo para que foram eleitos). Sim, o mau governo não é de agora nem de hoje, a diferença é que nos impressionamos mais com o erro ou o mal de que somos contemporâneos, do que com o que aprendemos na História. Como um ciclo maldito condenado à sua própria perpetuação, raramente os ganhos e responsabilidade nas contas publicas foram superiores à despesa e à sua irresponsabilidade: não estamos outra vez pendurados nos euros que hão-de vir de fora? Estamos, sim, e em alguns casos, desesperadamente e não apenas por causa da pandemia. A única coisa que cresce é o Estado, na razão inversa do que nos serve: cumpre mal as suas mais nobres funções, educação, administração publica, segurança – nossa e do país – para só evocar isto. Talvez porque esteja mal entregue, falha na autoridade, atrapalha na ineficiência, incomoda na indignidade: do inexplicável comportamento de algumas cadeias de comando á reiterada falta de respeito pelo cidadão contribuinte, passando pela intricada teia de uma inamovível burocracia. E no entanto… só o Estado cresce. Continua a crescer. Servirá muito para os votos, pouco para agilizar a eficiência ou a capacidade de proteção ou resposta de que necessitamos nos seus diversos serviços (para não falar do hostil desequilíbrio entre as regalias automaticamente adquiridas pelo funcionalismo publico, face aos trabalhadores do sector privado).

Foi para esta paisagem desoladora que António Costa achou politicamente verosímil disparar um aviso e propor um combate, enérgicos, ambos: contra o “fascismo”, que estaria já como um joelho na porta para entrar por aqui dentro (nunca será demais evocar o arranjão que faz à esquerda aquele rapaz demasiado histriónico, excessivo e tonitruante que seria o “fascista”). Mas como o que tem de ser tem muita força, e a sobrevivência política do primeiro ministro depende da assinatura anual da esquerda radical no Orçamento de Estado (desde há seis anos engolindo o PCP e o BE tudo o que há para engolir) dá-se-lhes o bom-bom do combate ao fascismo. Mobilizem-se pois armas e tropas não contra os falhanços do Estado, a improdutividade do país, a adversidade dos que ficaram para trás com a pandemia mas contra o “fascismo” (não devem de facto saber o que é).

2 Isto por um lado. Por outro, Costa sabe que o terreno está bem adubado para a oportunidade do seu novo combate, ninguém no PS e na esquerda radical se distraiu no adubar da terra para que ele florescesse. Dou apenas um exemplo por me parecer eloquente: o uso do critério – preciosíssimo instrumento de navegação na avaliação das coisas da política – caiu em desuso. Trocado velozmente pela prática de uma desabrida desonestidade intelectual, vive-se num mar de (intencionais) equívocos onde tudo (intencionalmente) se confunde: conceitos, intenções, palavras, filiações, pertenças, projectos. Eu não sei de onde vem ódio tão raivoso da esquerda por todo o espaço à direita do PS. Todo o espaço, digo bem. Onde tudo se confunde, repito, mas onde sobretudo tudo se denuncia, da falsidade à invenção, num notabilíssimo, ousadíssimo, “ilimite” da falta à verdade. O muito profissional ódio com que olhando para essa metade do país se deturpa, inventa ou manipula o que alguns dizem – sancionando-se quem diz, atribuindo-lhe palavras que não disse e intenções que não exibiu – passou a exercício corrente.

Terreno adubado é isto.

Os “esclarecidos”, claro, estão a salvo. São amados, estimados, mimados, são os esclarecidos úteis. Vai dar um trabalhão quando tiverem de ser salvos politicamente da sua própria vaidade, não pelos seus compagnons de route simétricos, mas justamente pelos que hoje eles desprezam, com acinte, com ódio, com perversidade. É conforme.

3 E já agora: mencionei acima o óbvio desnível que existe entre ter um emprego no Estado ou trabalhar no sector privado. Por outras palavras, falei de filhos e enteados. Há dias o governo ofereceu-nos ao vivo e em directo uma extraordinária – inimaginável até – versão disso mesmo: o desvelo com que milhares de ingleses passaram à categoria de filhos pródigos em detrimento dos portugueses expeditamente transformados em enteados e banidos de um estádio de futebol português. Foi grande momento de desprezo e desrespeito político. Inesquecível momento. E nem vale a pena perder tempo com o uso “obrigatório” de mascara nos areais do país, ou na policia a farejar restaurantes e a contar os comensais. Basta fazer o que nos fizeram: pagar-lhes na mesma moeda. Ou os exemplos não chegam do alto?

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