Ouve-se e lê-se que António Costa, depois de sete anos de governo, está cansado, o que explica os erros sucessivos por ele cometidos nos últimos tempos e as múltiplas trapalhadas com a gente que escolheu para com ele trabalhar. À primeira vista, é uma doutrina plausível. Eu, por exemplo, se ocupasse o cargo dele, ao segundo dia de ofício, depois de contemplar várias vezes a possibilidade do suicídio, já tinha decidido fugir para uma qualquer ilha perdida do Pacífico para não mais voltar a pôr os pés em Portugal. E mesmo criaturas mais resistentes acabam por esgotar as suas forças e desistir, depois de o tempo ter produzido o seu devido desgaste e o prazer no exercício da actividade ter desaparecido. Como diz a canção de Leo Ferré, avec le temps, va, tout s’en va, e chega um momento em que alors vraiment avec le temps on n’aime plus.

É, no entanto, inverosímil que tal tenha acontecido a António Costa. Até porque também se diz à boca cheia por aí que ele se encontra tomado por um novo amor que habita em Bruxelas. Ora, se é verdade que ninguém tem a obrigação de amar ninguém, também o é que ninguém tem de pedir desculpa por se apaixonar. Ainda para mais quando esse publicitado novo amor, dizem os boatos, parece, ó imensa felicidade!, ser correspondido. O que há então de mais natural que ele não se contente com breves e furtivos encontros lá na Europa e ambicione romper as amarras com o leito conjugal da pátria que já não o satisfaz e que, ainda por cima, o atormenta com queixumes sortidos e cenas feias em público? O que basta, basta, com raios e coriscos!

Dito isto, é, no entanto, possível que as presentes trapalhadas no governo tenham outra explicação menos envolta em amores e desamores. Ela resume-se talvez num verso célebre de Eliot: In my beggining is my end. O princípio de Costa no governo assentou numa mentira fundadora: a de que Pedro Passos Coelho havia sido o responsável pelas políticas ditadas pela troika a Portugal no período da “austeridade” e que a inocência do PS de Sócrates (e de Costa) nesse capítulo era pouco menos do que absoluta. Essa mentira – voluntária e consciente – esteve na base de uma série de mentiras consecutivas, como, por exemplo, a do “virar da página da austeridade”, e transformou uma eleição perdida numa eleição ganha, através do artifício da “geringonça”. Tais mentiras, e a desonestidade política que consubstanciam, nunca o incomodaram em nada. Pelo contrário: foram o combustível que lhe permitiu governar durante sete anos e até obter uma maioria absoluta. E tudo isso sem uma única ideia política digna desse nome: isto é, um projecto claro e definido para o país, fora de algumas noções apanhadas nos discursos de Bruxelas – “transição climática”, “transição digital”, etc. –, que ele papagueou como fórmulas encantatórias. Mas as mentiras, passado algum tempo, que pode ser longo, de gastas e esfarrapadas que são, tornam-se auto-destrutivas. Infiltram tudo o resto. Impedem uma política com um rumo coerente. As trapalhadas recentes do governo são o seu natural corolário: o resultado praticamente inevitável de se ter construído um edifício sobre bases falsas. “No meu princípio está o meu fim”, de facto. E não me venham, por favor, falar de “cansaço”. Porque é muito pior do que isso: é o atingir do limite de elasticidade de uma fórmula perversa que está à beira de se esgotar porque os seus próprios princípios a isso a conduziam.

À sombra deste edifício cada dia que passa mais periclitante florescem arranjinhos vários. É claro, dir-se-á, que eles florescem sob qualquer governo, por melhor que seja. É verdade. E seria bom que se percebesse que, para muitas pessoas, a corrupção é uma actividade natural. As pessoas não gostam todas do dinheiro da mesma maneira: a paixão crematística, por exemplo, não é universalmente partilhada. Além disso, o dinheiro não tem o mesmo significado para toda a gente: o que para uns é muito, para outros é pouco. E há as tais pessoas que não se preocupam excessivamente com os meios de o adquirir.

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É fácil de ver que uma atmosfera política informe – e a informidade é o reino de Costa – incentiva estas últimas. Se não há linhas políticas bem definidas (coisa que Costa é incapaz de traçar) que as pessoas consigam identificar e que, de uma maneira ou outra, sirvam de ponto de referência na vida social, por grandes que sejam as diferenças que as separam, tudo se torna mais propício às tradicionais habilidades da esperteza. Abyssus abyssum invocat, como se sabe, o abismo chama o abismo. O abismo da mentira política atrai para junto de si e para os seus arredores o abismo da esperteza e, em frequentes casos, da corrupção pura e simples.

Volto à minha. Um governo assente numa mentira fundadora não pode sobreviver, mesmo em maioria absoluta, sem perpetuar essa mentira sob várias formas. Ora, o limite da elasticidade da mentira terá, de uma forma qualquer, de se manifestar. O abismo da mentira política de Costa está-se a abrir diante de nós ostensivamente. O sinal que mais atrai o jornalismo são os conflitos entre os que aspiram a suceder-lhe. Mas esse abismo, pelo qual o governo corre o risco de cair, desdobra-se num outro: uma espécie de anomia social que se expressa numa multiplicidade indefinida de criaturas, cujas caras vamos conhecendo dia sim, dia não, que se aproveitam dela para tratar dos seus privados interesses. Os mentirosos aproximam-se do regime da mentira. Um abismo chama o outro, o informe convida o informe. E os dois quase se confundem. A opinião comum tende a essa confusão. E, à sua maneira, tem razão.

Amor por Bruxelas? Com o devido respeito, deixemos as paixões de António Costa para o seu próprio anedotário sentimental e preocupemo-nos mais com os palpáveis efeitos deletérios das suas mentiras. A começar pela primeira, a mentira fundadora. Que não é só sua, de resto. É do PS quase inteirinho.