Não há sondagens que o indiquem, mas não é difícil de prever que, dos cinco assuntos nos quais o clero é mais versado, geoestratégia não esteja incluída na contagem. Da mesma forma, também não deve andar muito longe da verdade quem disser que, se Camões afirmava ter numa mão sempre a espada e noutra sempre a pena, é mais útil, para procurar um olhar clarividente sobre este tema, trocar a pluma pela História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides, e pela Política como Vocação, de Max Webber. A verdade é que se há certeza que trespassa nos dois textos é a clara e inequívoca limitação das ideias, enquanto fator central de decisão. Não são poucos os casos onde a ideologia esbarra na responsabilidade. Como não são escassos os momentos onde à moralidade não corresponde o sucesso ou o uso de fins igualmente morais.

Numa recente entrevista, o Papa Francisco associou “a coragem da bandeira branca, da negociação” à guerra na Ucrânia. As reações foram imediatas e manifestavam a desilusão e o choque perante as palavras do Papa, atirando-o para o lado dos que defendem a Rússia, que considerou, aliás, a referência de Francisco “perfeitamente compreensível”. Não é o meu objetivo analisar se o Papa disse ou não o que, por exemplo, Zelensky ou Stoltenberg interpretaram, mas retomar algo que, penso, está por detrás da resposta do Papa e que, não raras vezes, tem sido esquecido.

É infantil continuar a achar que o mundo ideal é o mundo onde não existe mal ou imperfeições. Ao invés, o mundo ideal é aquele onde essas mesmas imperfeições e esse mesmo mal não conseguem destruir o mundo. Algo muito semelhante à definição leibiziana de “melhor dos mundos possíveis”.  Daí que mais que tentar erradicar o mal do mundo seja útil criar um sistema onde ele, embora exista, está contido e não é capaz de subverter o xadrez das relações. Isto tem um paralelo interessante no horizonte cristão: mais que eliminar o pecado de vez, o cristão sabe que irá conviver com ele até à ressurreição e isso implica assumir e conviver com a certeza de que não é perfeito.

É importante relembrar, por isso, que conceitos como “rendição incondicional” são menos comuns na história mundial do que se pensa. Estamos habituados a pensar qualquer conflito bélico usando como padrão a II Guerra Mundial, mas isso é excesso de “presentismo” se olharmos para o período histórico por inteiro. No congresso de Viena, que se seguiu à derrota definitiva de Napoleão, por exemplo, na disputa entre a perspetiva idílica da paz (Alexandre I) e o horizonte de conquista bélica (Napoleão), nenhum desses lados venceu, e a decisão acabou por ser o envolvimento dos adversários atendendo aos seus interesses.

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Por isso, em algum momento, é preciso deixar de considerar imoral, ilegítimo, lamentável ou extremista argumentar que é bem possível que, nem Putin, nem Zelensky, consigam “a vitória” que idealizaram, porque qualquer conceito, em cenários como aqueles em que se vêm envolvidos, é mais volátil, dinâmico e adaptativo, que fixista e rigoroso. Creio que é também isto que o Papa Francisco quer exprimir na sua resposta.

Do apelo a uma negociação não se pode inferir sempre uma tomada de posição em defesa de uma das partes, principalmente daquela que iniciou uma ação militar injustificada e não provocada. As próprias sanções, de acordo com a Doutrina Social da Igreja, devem ser vistas mais como medidas para abrir caminho ao diálogo, do que como instrumentos de punição. Aliás, a paz para os cristãos é, antes de tudo, um atributo de Deus, e não uma “coisa” que se constrói. Daí ser algo a que ficamos sempre aquém.

Não deixa de ser curioso que um mundo que se define como mais civilizado, considere que a única arma é a aniquilação.