Eles são os fidalgos da casa socialista. Essa casa em que a mãe está na empresa pública, o pai no gabinete de estudos, a filha na Santa Casa, o namorado da filha no gabinete do ISCTE… Esta gente está com o PS por instinto de sobrevivência pois sendo a máquina do Estado a sua casa ninguém a controla e usa com tanta eficácia como o PS, logo a proximidade ao PS tornou-se tão natural e indispensável quanto respirar.

O poder dos fidalgos da casa socialista advém-lhes precisamente da sua capacidade na hora de agilizar os procedimentos, contornar as exigências e ultrapassar os requisitos desse conglomerado de leis, regulamentos, procedimentos, empresas públicas, comissões, institutos, gabinetes que nem o Governo consegue contabilizar (só estruturas temporárias serão 206 segundo o Governo que demorou seis meses a contá-las e mesmo assim esqueceu-se de algumas).

Agora, alguns desses fidalgos são apanhados nos enredos dessa máquina que eles mesmos acrescentam e alimentam. E como invariavelmente acontece aos fidalgos, os fidalgos da casa socialista não percebem porque se tornou um escândalo aquilo que para eles era a normalidade.

A zona por excelência dos fidalgos da casa socialista (e das outras, mas a sua dimensão tem-se reduzido significativamente) é esse nenhures que fica na rectaguarda do governo, constituído pelos cargos de nomeação e também alguns de eleição municipal. Em termos de remuneração podem ganhar mais do que se estiverem no governo. Em termos de poder têm muito à sua escala. Em termos de escrutínio predomina a opacidade ou mesmo a quase invisibilidade. Este último e muito invejável estatuto – o da invisibilidade – é por exemplo aquele de que goza a holding estatal das indústrias de Defesa, IdD — Portugal Defence. Nem o descontrolo do custo das obras no Hospital Militar ou a detenção do ex-presidente Conselho de Administração de uma das empresas desse entramado (a EMPORDEF) foi suficiente para que se desse mais atenção ao universo da IdD — Portugal Defence, cujo peso nos gabinetes dos ministros da Defesa Gomes Cravinho e Helena Carreiras é evidente.

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Quando, num momento de irreflexão, os fidalgos saem dessa zona de conforto expõem-se. Carla Alves e Alexandra Reis devem amaldiçoar agora o momento em que aceitaram convites para integrar o Governo, sendo que no caso de Alexandra Reis cabe perguntar: alguma vez a indemnização que recebeu da TAP seria questionada se não tivesse aceite o convite de Fernando Medina? Provavelmente não. Sobre Carla Alves o caso configura quase o regresso às personagens secundárias de um romance de Camilo!

Não é um acaso que nos governos socialistas de António Costa as relações familiares no círculo mais interior do poder tenham atingido proporções inéditas: pais, filhas, irmãos, maridos e mulheres são os representantes de uma nomenclatura endogâmica que, ao contrário do que acontece com os fidalgos, está mais ou menos blindada contra os escândalos dos Vinhais de cada um dos recém-chegados. A ministra Mariana Vieira da Silva é o rosto mais genuíno dessa nomenclatura que muda de cargos no governo como se estivesse a progredir na função pública: filha de um antigo ministro, passou do ISCTE para assessora, de assessora para adjunta, de ajunta para secretária de Estado, de secretária de Estado a ministra… Mas temos também os irmãos Mendes (Ana Catarina e António Mendonça, ela ministra e ele secretário de Estado) e já tivemos o casal Eduardo Cabrita e Ana Vitorino. No preciso momento em que acabo este artigo constato que a mulher de Fernando Medina, Stéphanie Sá da Silva, filha de Jaime Silva, ministro da Agricultura durante o primeiro Governo de José Sócrates, vai ser substituída no cargo de directora jurídica da TAP por Manuela Vasconcelos Simões, que vive com João Tiago Silveira, antigo secretário de Estado de José Sócrates.

António Costa vive agora um momento de crise: a sua nomenclatura dividiu-se — Pedro Nuno Santos desafia-o e os fidalgos da casa socialista geram escândalos atrás de escândalos. Mas pode dizer-se que isso faz parte da vida de qualquer um que ocupe o lugar de primeiro-ministro por tanto tempo. O que realmente choca é que para lá da espuma dos dias chegamos à razão de ser do nosso presente bloqueio: aquilo que garantiu a António Costa, primeiro, fazer governo e, depois, anos de governo sem contestação é também a razão do seu insucesso como primeiro-ministro: em 2015 António Costa comprou o poder garantindo às corporações que não faria uma única reforma.

O resultado foi primeiro a degradação dos serviços públicos e agora a sua contestação. A contestação a quem em 2015 garantiu o que não podia nem devia: nesta semana que agora acaba os comboios não andaram; a espera nas urgências de alguns hospitais foi de 14 horas; o ministro da Educação desistiu de tentar alterar o regime de colocação de professores. Na semana que vem os oficiais de justiça começam uma greve por tempo indeterminado e outros sindicatos da educação anunciam mais luta… A não ser que por reforma se entenda o imobilismo, o estatismo e a redistribuição de fundos comunitários não se entrevê uma reforma que tenha a assinatura dos governos de António Costa.

Por ironia, o mesmo António Costa que não vai deixar uma marca no progresso do país vai deixar uma marca no PS: mudou-o decisivamente. Deslocou-o para a esquerda acreditando que mais tarde podia fazer alianças ao centro. Não foi isso que aconteceu. Acabou a insuflar a ala esquerda do PS que neste momento em nada se distingue do BE. Asfixiou a ala centrista do PS e gerou um antagonista, Pedro Nuno Santos. O muro que Costa dizia ter derrubado à esquerda caiu, só que caiu dentro do PS.

Como é que isto vai acabar? Muito provavelmente António Costa vai beneficiar de um último favor do Presidente: em 2024 pode muito bem acontecer uma crise a tempo de António Costa deixar o governo e vir a ocupar o lugar de Charles Michel no Conselho Europeu.

Portugal ficará com um PS em deriva esquerdista e com um PSD com medo de ser poder num país que passou de uma ditadura de partido único para uma democracia de política única, o estato-dependentismo.

PS. O ministro da Saúde, Manuel Pizarro resolveu anunciar que não exclui o encerramento de maternidades privadas pois “é preciso “fazer com que as regras muito exigentes no setor público” sejam aplicadas ao setor privado também”. Portanto perante o descalabro do SNS o ministro anuncia um estudo alargado do sistema, tão alargado que inclui também a oferta dos privados. Quando o público corre mal nada como virar as atenções para os privados, não é?!

Para abreviar o ministro pode fazer aquelas respirações de trabalho de parto e perguntar-se: que sentido faz excluir os privados do SNS? Porque não pode uma grávida ir ter o seu filho na unidade que quiser pagando o SNS à maternidade pública ou privada esse parto?

Em seguida pode simular o que de mais aproximado existe de um parto com recurso a fórceps “fazer com que as regras muito exigentes no setor público” sejam aplicadas no sector público. Boa sorte e que tenha uma hora pequenina, como diz o povo.