1Subitamente, o Mundo Livre acordou sob a ameaça de uma guerra nuclear feita por um ex-comissário do KGB, há vinte e dois anos autocrata da Rússia, com a condescendência do mesmo Mundo Livre que ele agora julga chantagear.

Foi na semana passada, quando Vladimir Putin iniciou uma guerra de agressão contra a Ucrânia, um Estado soberano que o ex-agente da polícia política soviética acredita pertencer-lhe, porque a História, segundo a sua interpretação, assim o diz, e porque os interesses geopolíticos da Grande Rússia o determinam. Fê-lo em violação clara e evidente de todos os princípios do Direito Internacional convencional ou comum, secularmente sedimentados por povos, homens e mulheres que aspiraram à paz e à liberdade, e contra os tratados internacionais que o seu próprio país concluíra com a Ucrânia e com outros Estados. De um só golpe, Putin dizimou a autodeterminação dos povos, a não ingerência em assuntos internos de outros Estados, a proibição da ameaça e do uso da força, a Carta das Nações Unidas e os Acordos de Minsk. Vladimir Putin lançou uma guerra de agressão a um Estado que se julgava soberano e que queria ser independente, livre e democrático, que já afetou milhares de civis, que está a matar homens, mulheres e crianças inocentes. Atacou hospitais, prédios de habitação, edifícios públicos e privados, monumentos, universidades, igrejas, estradas e pontes. Os seus aviões espalharam falsos brinquedos que explodem nas mãos de qualquer criança que lhes toque.

2Vladimir Putin não é um louco irracional, como se ouve e lê por aí, muito menos um defensor de uma Rússia ameaçada pelo Ocidente, pelos EUA e pela NATO.  Pelo contrário, é um decisor frio e racional, muito consciente dos seus atos, e o primeiro responsável por tudo o que possa acontecer ao martirizado povo da Ucrânia e ao Mundo, pela ambição imperial de reconstruir a Grande Rússia de Pedro, Catarina e Estaline, o verdadeiro motivo desta invasão.

Mas, apesar de liderar há muito tempo, há tempo demasiado, um dos países mais poderosos do mundo, e de ser um líder astuto e poderoso, ele não é, nunca foi, um homem livre. Vladimir Putin viveu sempre oprimido e a oprimir na antiga União Soviética, onde as relações sociais e políticas se pautavam pelo terror, e, quando chegou ao poder máximo da Federação Russa, foi essa mesma receita que aplicou aos seus concidadãos e aos que lhe são próximos, porque é só isso que conhece, porque é apenas desse modo que concebe a vida humana e as relações entre os homens. No mundo de Putin só existe força, dominância e terror. Nesse mundo, não há espaço para a liberdade, para a fraternidade, para a cooperação. Sentindo-se inseguro no destino da sua agressão ao povo ucraniano, o déspota do Kremlin ameaçou-nos a todos com o fogo nuclear: a mim, a si, aos nossos filhos, irmãos, pais, familiares, amigos, às comunidades e aos países onde vivemos em paz a vida comum de todos os dias.

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O que Putin desconhece é que os homens livres não ignoram o que é a natureza humana. Eles sabem que um dia morrerão. Não aspiram ao desvario da eternidade, não são loucos nem mitómanos, não desconhecem que um dia tudo acabará. Que a glória, a fortuna, o prestígio e o poder aqui alcançados são passageiros, efémeros e finitos. A força de um homem livre vem também daí: não está disposto a ser escravo sob a ameaça daquilo que sabe que, um dia, será o seu destino inevitável. Porém, até esse dia, por privações e sacrifícios por que passe, não viverá a rastejar. A liberdade, uma vez experimentada, é irrenunciável, e os ucranianos, por pouco tempo que a tenham tido, sentiram-lhe o sabor. É por isso que, apesar da tirania, da guerra e da ameaça da morte, há ainda heróis como Volodymyr Zelensky e Alexei Navalny. E como todos os ucranianos que permaneceram no seu país e todos os russos que resistem ao tirano do Kremlin.

3Esta guerra faz-nos recordar que a política continua a existir. A política, na sua expressão mais brutal e hobbesiana da ameaça permanente da guerra possível de todos contra todos e do medo natural que temos dela, que é a argamassa com a qual se firmou o pactum societatis criador dos Estados, sob cuja proteção os comuns mortais se colocam. Mais perto de nós, no século passado, Carl Schmitt, ele próprio algoz e vítima da mesma obsessão hobbesiana pelo estado latente de guerra, colocaria sobre ela a responsabilidade divisora do político em relação a tudo o mais que é intrinsecamente humano, porque apenas a política e o Estado poderão, no limite, dispor da vida das pessoas concretas. Em nenhuma outra dimensão da atividade humana isso, de facto, sucede. É, pois, nesse núcleo determinante, na delimitação da relação existencial do «amigo e inimigo», na separação por vezes fatal do que nos pertence e do que pertence ao outro, que, segundo Schmitt, se encontrará a essência do político, o critério que faz da política uma atividade humana completamente distinta de todas as outras. Com a prosperidade e a paz de muitas décadas, as sociedades da Europa parecem ter-se esquecido da sua existência.

4As reações da comunidade internacional à agressão de Putin à Ucrânia, principalmente dos Estados-membros da União Europeia, foram inicialmente muito modestas e, por isso mesmo, preocupantes. Não obstante, compreendem-se. Os tambores da guerra não se ouviam no Ocidente, com raras e fugazes exceções, desde 1945. Esta inacreditável proeza foi conseguida graças aos homens e mulheres que perceberam que a liberdade é o único fim a que a Humanidade pode dignamente aspirar, e que, sem ela, viver será sempre um fardo ingrato e intolerável. A Europa Ocidental conheceu, desde então e até hoje, as décadas de maior tranquilidade e prosperidade que a História alguma vez registou. Nesses muitos anos que já passaram, vivemos em liberdade, circulámos entre países e nações em liberdade, comprámos, vendemos e prosperámos em liberdade, relacionámo-nos em liberdade, partilhámos, amámos, sofremos e vivemos uns com os outros em liberdade. É isto que a guerra de Putin quer destruir.

5O processo de integração europeia foi lançado após a 2ª Guerra Mundial, com o objetivo de impedir novas guerras na Europa e, sobretudo, de conter a expansão ocidental soviética. Acreditámos que a paz se construía exclusivamente pela via do livre-comércio, inequivocamente o meio mais adequado para aproximar Estados, comunidades e pessoas, mesmo quando se guerrearam secularmente e alimentaram profundas desconfianças entre si. A via escolhida foi a que os grandes pensadores liberais clássicos haviam proposto durante e depois do Iluminismo: a criação de um espaço europeu de livre-comércio, entretanto experimentado no Zollverein alemão, com o qual se amansara a impetuosidade prussiana e se conseguiu a unificação alemã em 1871. Adam Smith, David Ricardo e Jean-Baptiste Say explicaram-no, e Bastiat advertia que «quando as mercadorias não atravessam as fronteiras, os exércitos irão fazê-lo».

Mais tarde, já na fase final da primeira metade do século XX, nas últimas páginas do The Road of Serfdom, Friedrich Hayek prenunciou exatamente as grandes linhas de desenvolvimento do projeto europeu. Porém, se a crise que vivemos demonstra alguma coisa, é que o livre-mercado e o comércio, sendo instrumentos extraordinários para promover a paz, podem, em certas circunstâncias, não ser suficientes para a manter. A política faz parte deste mundo, e ela assenta sobre a força e na coação, e na possibilidade de concretizar esse momento de exceção, a que Carl Schmitt se referia, que é a guerra. As sociedades que virarem as costas a este facto arriscam-se a ser escravizadas.

6O primeiro responsável pela conceção do projeto europeu foi Jean Monnet, e estava bem consciente disso. Ele era um francês visionário nascido e criado na região de Cognac, um homem cosmopolita e experimentado muito próximo dos americanos, que aconselhara a Casa Branca no sentido da realização do Plano Marshall, do qual viria a ser um dos principais artífices. Monnet foi, por este tempo do pós-guerra, consciente ou inconscientemente, o homem dos americanos na Europa, gizando e executando o plano traçado para realizar a paz no Velho Continente, que passava pelas seguintes condições: diluição gradualista de parte do núcleo fundamental das soberanias estaduais em autoridades supranacionais, através da dinâmica de integração gerada por um grande mercado comum de livre-comércio; colocação dos principais recursos necessários às máquinas de guerra sob uma autoridade comum supranacional (carvão, aço e energia atómica); e a criação de um exército europeu com uniforme próprio e comando comum, inicialmente constituído por 100 mil soldados.

7Monnet não conseguiu levar por diante esse projeto da Comunidade Europeia de Defesa, que propusera em 1950 a René Pleven, primeiro-ministro da França, ao contrário dos resultados que obteve com as outras três Comunidades Europeias (a do Carvão e do Aço, em 1951, a Económica e Comercial, em 1957 e a da Energia Atómica, também nesta última data). Apesar dos governos dos Estados fundadores dessas três Comunidades Europeias (Bélgica, República Federal da Alemanha, França, Itália, Luxemburgo e Países Baixos) terem também acordado e assinado o Tratado de Paris (1952), que criava a Comunidade Europeia de Defesa, a França não o ratificou. Numa sessão parlamentar do dia 30 de agosto de 1954, os deputados gaulistas votaram contra o tratado, em nome da «Europa das Pátrias», e impediram que ele fosse concluído. Em resultado disso, consciente de que sem um forte pilar defensivo a Europa seria sempre frágil, Monnet demitiu-se do cargo de Presidente da Alta-Autoridade da CECA (Comunidade Europeia do Carvão e do Aço). Desde então, a Europa abandonou a criação de uma efetiva política de defesa e segurança comum, emergindo no Tratado de Maastricht (1992) um seu simulacro sob a forma de simples cooperação, não de integração, que nunca foi capaz de pôr a Europa a falar, sobre elas, a uma só voz. Até à invasão Russa da Ucrânia.

8E este é, por enquanto, o único resultado positivo dos factos que, por estes dias, ensombram a nossa existência. Regressados a 1945 e ao dilema hobbesiano do medo da guerra como cimento agregador da política, os Estados-membros da União Europeia erguem-se, de novo, contra um inimigo que agora percecionam ser-lhes comum. Em razão do que começaram a tomar decisões unânimes e corajosas de política externa e de segurança, apoiando o povo ucraniano, não obstante as ameaças nucleares do autocrata do Kremlin. Décadas seguidas de paz, prosperidade e liberdade podem ter-nos feito esquecer a importância vital da política, mas parecem ter-nos feito também entender que a civilização livre que construímos não tem preço.