Na véspera do dia internacional da mulher, celebrado e justamente associado à luta contra a desigualdade de género, tenho noção que este título cai um pouco como uma mosca na sopa. Mas, se tem algo de provocatório, também não diz nada que não seja evidente: a desigualdade de género não é um exclusivo das mulheres. Dizê-lo não deixa, contudo, de ser contracorrente, porque o debate se foca principalmente nas desigualdades que atingem mulheres – em grande medida, porque essas situações são, não haja dúvida, muito mais numerosas e gravosas. E isso afecta a própria compreensão do problema: quando uma evidência (haver desigualdade de género para homens) pode ser confundida com uma provocação, está encontrado um enviesamento no próprio debate. Parte desse enviesamento tem raiz na conversão dos debates sobre desigualdade de género em braços-de-ferro persecutórios de mulheres contra homens – uma perspectiva conflituosa que impede avanços mais significativos.
É praticamente consensual (e ainda bem) que o género é um factor imprescindível quando se desenham políticas. Ou seja, não o ter em conta faz com que, inevitavelmente, desequilíbrios sejam gerados. Sim, na maior parte das vezes, prejudicando as mulheres em desigualdades salariais, conciliação familiar ou acesso a cargos de topo – em muitos sectores, Portugal ainda é um país culturalmente machista. Mas, noutras ocasiões, prejudicando silenciosamente os homens – e isso não deve ser ignorado. E, sublinhe-se, para as políticas públicas, o ponto não deve ser aritmético, impondo uma igualdade radical e numérica de género em todos os sectores da sociedade. O ponto está em ter o género como factor relevante para a análise e tomada de decisão política, caso a caso, prevenindo desequilíbrios artificiais.
Essa necessidade observa-se em muitas áreas, desde a Saúde à Administração Pública em geral. Na Educação, ela é particularmente saliente e, sendo a Educação a raiz de quase tudo, condiciona estruturalmente o futuro do país. Veja-se o caso do abandono escolar, cujo combate é uma prioridade política – a taxa de abandono escolar foi, em 2018, de 11,8% (era de 34,9% em 2008). O que esta média esconde é que o desafio é muito mais severo nos rapazes (em 2017, 15%) do que nas raparigas (10%). Algo semelhante ao que acontece no acesso ao ensino superior: nos últimos 25 anos, todos os anos matriculam-se pela 1.ª vez mais mulheres do que homens – actualmente, é um fosso à volta de 13 mil matrículas por ano. Ou seja, os rapazes estão a ficar mais facilmente para trás e, a longo prazo, isto vai criar uma desigualdade de género estrutural nas qualificações da população portuguesa – uma diferenciação de género que tem de ser tida em conta na tomada de decisão das políticas públicas, nomeadamente em programas de fixação dos rapazes na escola e no ensino superior.
Outro exemplo, agora no sentido contrário: são menos as raparigas que optam por estudos e carreiras nas áreas científicas. Será uma tendência natural ou resultado de uma desigualdade de género artificial? Os dados são claros: os dois – mas mais o segundo do que o primeiro. Por um lado, é certo que os resultados das avaliações PISA apontam que, em média, os rapazes mostram-se mais confiantes e obtêm desempenhos mais altos nas provas científicas do que em leitura – e que, no caso das raparigas, se forem igualmente boas nas áreas científicas tendem a ser ainda melhores em leitura. Traduzindo, há maior inclinação dos rapazes para essas áreas. Mas, por outro lado, isso não afasta a constatação de que, pelos dados da OCDE, 34% das raparigas de 15 anos tenham perfil educativo para seguir essas carreiras científicas e apenas 28% o façam – ou seja, o que as afasta dessas vias não é o seu desempenho académico. Uma explicação possível poderia ser a das expectativas familiares: como se trata de uma área tradicionalmente masculina, são as próprias famílias das alunas a diminuir as expectativas de ingresso nas vias científicas. Estes dados da OCDE parecem indiciar isso mesmo e, no caso português, constata-se que 27% dos pais tem menores expectativas de prossecução de carreira científica para as suas filhas (isto quando os seus desempenhos a matemática são iguais aos dos rapazes). Neste caso, há uma desigualdade de género que prejudica as raparigas e que, sendo possivelmente cultural, a escola tem o dever de contrariar.
Estes desequilíbrios são geralmente tratados cegamente, indiferenciando o género. Olha-se apenas para o número de alunos que seguem para o ensino superior, para a média do abandono escolar ou para as notas de entrada nos cursos científicos – tudo sem perceber as desigualdades de género que esses números escondem e às quais o sistema educativo não responde. É isso que cada vez mais falta nos debates da desigualdade de género – até porque, seja na Educação ou noutras áreas, há formas eficazes de introduzir esta preocupação nas políticas públicas de forma transversal, para mulheres e homens. É inegável que o debate público sobre a desigualdade de género é ainda relativamente recente e tem feito muito bem à sociedade portuguesa. Mas, para não se tornar parte do problema, não se pode deixar ficar refém de uma visão enviesada (que demasiadas vezes trata o tema como exclusivo das mulheres) e, por isso, maniqueísta.