O Estado, o mesmo Estado que deixa crianças morrerem às mãos de psicopatas, que deixa meninas ciganas abandonarem o ensino obrigatório por razões “culturais” e que torna a reprovação quase impossível nas escolas públicas, persegue sem parança uma família obviamente estável e quer que os respectivos filhos, excelentes alunos nas matérias que importam, não passem de ano sem a frequência da exótica disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. Como a família não cedeu às ameaças, que duram desde 2018, o Estado subiu o grau das ditas e agora exige que os rapazes em questão sejam sequestrados do lar paterno durante o ano lectivo, ideia aparentemente ilegal e comprovadamente alucinada. Não tarda, pede-se a prisão dos pais, que é para aprenderem a ancestral arte da subjugação. Já que os rapazes não aprendem a Religião e a Moral vigentes, alguém tem de aprender alguma coisa nesta história.

Esta história é triste. E tenebrosa. O texto em que o Ministério Público (MP) escala a guerra contra a família de Artur Mesquita Guimarães, o homem de Famalicão que tem sido o solitário rosto da resistência, é um exercício de delírios, calúnias e brutalidade. Os pais “põem em perigo” os jovens. Os jovens arriscam sofrer “maus-tratos psíquicos”. Os jovens sofrem “coerção emocional”. Os jovens estão “sujeitos a comportamentos dos pais que afectam gravemente o seu equilíbrio emocional”. Os jovens não recebem “os cuidados de afeição adequado às suas idades e situação pessoal”. Os jovens podem “ser obrigados a atividades inadequadas à sua idade”. Os jovens “podem ser vítimas de ‘bullying’ por parte da restante comunidade escolar que respeita as leis”. O cinismo das citações acima não merece comentários. Entre as alegações do MP, há três pedaços que merecem.

O primeiro pedaço é o que refere a possibilidade – calamitosa, para o MP – de os dois miúdos de Famalicão não acederem à “formação em matérias como direitos humanos, igualdade de género, saúde, sexualidade, segurança, defesa, paz e bem-estar animal”. Grave? Gravíssimo, com a ligeira ressalva de nenhuma das “matérias” em causa ser da competência da escola. A escola existe, ou deveria existir, para fornecer conhecimentos técnicos e relativamente consensuais. Não existe, ou não deveria existir, para despejar em cima dos fedelhos os dogmas do momento e os evangelhos da moda. Proselitismo por proselitismo, antes a divulgação da Bíblia, que é intemporal, facultativa e, ao contrário dos gatafunhos analfabetos do “activismo”, esteticamente louvável. A propósito de conversa fiada, a escola pretende formar profissionais capazes ou sucessores do eng. Guterres?

O segundo pedaço notável das alegações é aquele em que o MP suspeita que “os pais parecem ignorar que a criança ou o jovem é um ser autónomo, com autonomia jurídica”. A autonomia de menores dependentes é discutível. De qualquer modo, é interessante reparar que o MP apenas acautela o conceito no ambiente familiar: no ambiente escolar, onde se submetem petizes a relambórios toscos e injecções de “virtude”, a autonomia desaparece misteriosamente. O Estado respeita tanto a autonomia dos rapazes de Famalicão que despreza sumariamente a opinião dos próprios, que afirmaram em público a concordância com a vontade dos pais e a vontade deles em não assistir às aulas de Cidadania. Estariam a ser alvo de “coerção emocional”? Padeceriam de Síndroma de Famalicão? Teriam uma pistola apontada à cabeça? Nunca se sabe, mas, polémicas à parte, bate certo que miúdos inteligentes detestem perder tempo em “aulas” que oscilam entre o inútil e o apatetado.

O terceiro pedaço é o mais medonho. O MP garante que os pais dão “exemplo de foras da lei, que decidem não cumprir, decidindo em causa própria como se juízes fossem”. Afora a pobreza estilística, a frase caberia no 1984 ou no Fahrenheit 451. Assim, não destoaria do Livro de Estilo da Stasi. O Estado jamais aprecia o inconformismo e a dissensão. É porém raro que o proclame de forma tão franca. Para o MP, que possui franqueza de sobra, educar é impor leis acéfalas sem esboço de hesitação ou dúvida. Nessa linha, a educação não se distingue da submissão dos indivíduos à força de quem manda, até ao ponto em que deixam de ser indivíduos e se reduzem a zombies reverentes e agradecidos. Dar o “exemplo” dos pais de Famalicão é, isso sim, o objectivo do MP, que deseja exibir no pelourinho da praça as consequências de se ter princípios, decência e coragem. Não é somente a desobediência que perturba o poder: a chatice maior é recusar a ideologia reles que dissimula a natureza desse poder.

Por ironia, o papel do Estado nesta história acaba por confirmar os malefícios de confiar à escola a mais pequena variação da instrução “convencional”. Desviar um centímetro da gramática e da aritmética, da química e da física – cuja exigência curricular, aliás, encolhe a cada dia – é meio caminho andado para contaminar fedelhos com os piores desvarios da pior gente. Ainda que a monstruosidade em curso morra em Setembro, conforme se espera de um lugar que não a Coreia do Norte, a mera tentativa da monstruosidade e a quantidade de gente a apoiá-la não auguram nada de bom. Quem, por ignorância e fé, abdica da vida e da liberdade e dos filhos pode doutorar-se em Cidadania, mas é o oposto de um cidadão.

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