Os factos chegaram em meados de Agosto com um título estranho que se repetia em boa parte da imprensa francesa: “Violação bárbara em Cherbourg”. A reacção imediata era óbvia: será que existe alguma violação que não seja bárbara? Porquê esta classificação como “violação bárbara“? Mas quando se cruzavam as diferentes notícias rapidamente se percebia que não havia outra forma de descrever o sucedido naquela cidade francesa: a 4 de Agosto, uma jovem de 29 anos, Megane, que se preparava para sair para o trabalho viu a entrada da sua casa em Cherbourg-En-Cotentin forçada por um homem que a agrediu e violou. Na violação foi usado um cabo de vassoura com 75 cm. Os técnicos de saúde que foram chamados ao local, e que será escusado dizer que estão habituados a lidar com situações graves, ficaram chocados. A mulher apresentava perfurações do colon, intestinos, diafragma, pulmões… fracturas várias e risco de septicemia. O coma foi induzido e tanto quanto se sabe ainda se mantém.

O acontecido à jovem Megane tornou-se notícia. Cinco dias depois sabe-se que a polícia fizera já uma detenção. O detido chama-se Oumar. Tem 18 anos. Confessa os factos sem qualquer sinal de remorso ou empatia para com a vítima.

Mas os factos chocantes que marcam todo este caso ainda não tinham terminado: rapidamente se fica a saber que Oumar era “desfavoravelmente conhecido” pela polícia. Aliás foi exactamente por causa desse conhecimento que Oumar foi tão prontamente detido: as impressões digitais que deixou no local permitiram identificá-lo pois constavam da base de dados da polícia que contabilizava antes desta agressão à jovem Mégane já 17 referências a Oumar.

Oumar não só ameaçava os vizinhos, roubava, agredia quem lhe fazia frente (e note-se que ele é muito corpulento) e defecava nas escadas, como batia constantemente na mãe. Esta já chamara a polícia várias vezes mas tudo acabavam em nada porque os factos, segundo as autoridades, não seriam suficientemente graves. O dia a dia da casa onde Oumar vivia com a mãe repartia-se, segundos os vizinhos, em dois turnos, ambos marcados pela violência: enquanto a mãe estava em casa ouviam-se os seus gritos de dor, quando ela saía ouviam-se os gritos dos rapazes do grupo de Oumar que ali se juntavam a ele para fumar haxixe.

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Oumar já fora referenciado também por duas agressões sexuais. Uma foi arquivada por não estar suficientemente caracterizada, a outra em que a vítima fora a sua irmã ainda estava em investigação, investigação essa de que por sinal fazia parte um conjunto de perícias a que Oumar faltara. Nada disto foi suficiente para que houvesse uma intervenção por parte da justiça.

Note-se que em nada este percurso de Oumar se distingue doutros casos daquilo que agora em França se designa como incivilidades. Enquanto as incivilidades se multiplicam todos os protagonistas cumprem os procedimentos. Todos agem como deve ser na observância estrita do que está estabelecido. Todos parecem afectados por uma paralisia ditada pela observância dos procedimentos.

Não deixa de ser paradoxal que, ao mesmo tempo que exigimos justiça e condenamos dirigentes da Igreja Católica por não terem feito mais, há várias décadas, para travar as agressões sexuais dentro da Igreja, assistimos agora mesmo a casos como o de Megane (e também da mãe e da irmã de Oumar) como se nada se pudesse fazer para os evitar. Sim, é bem mais fácil indignarmo-nos com o acontecido nos anos 50 ou 90 do século passado do que olhar para aquilo que está a acontecer agora. E também é bem mais fácil exigirmos responsabilidades a uma instituição como é a Igreja do que a nós mesmos e àqueles que elegemos, como sucede com a justiça e a educação.

Para mais as nossas indignações só são possíveis se elas forem focadas em alvos que não nos causem problemas. Veja-se o caso de Oumar. É filho de um senegalês, logo há que ter em conta que existe o sério risco de se acabar a ser acusado de racismo. A este risco, que não é nada insignificante e que pode destruir a vida ou pelo menos a carreira profissional de alguém (a propósito lembram-se do actor Laurence Fox? E porque será que cada vez o vemos menos como actor?), junta-se o argumentário do estar-se a fazer o jogo da extrema-direita. É cada vez mais vasta a lista dos assuntos e factos que não se podem discutir porque logo surgem os agitadores do espantalho do crescimento da extrema-direita. Como é mais que óbvio a extrema-direita cresce ainda mais ao deixar-se-lhe o monopólio de assuntos que tocam directamente na vida das pessoas.

Assim, à gravidade dos actos praticados por Oumar junta-se essa auto-censura que leva a que sua história e os seus crimes quase não suscitem notícias fora de França. O que implica que façamos de conta que Megane nunca existiu.