Nenhuma luta meritória pode ser travada quando as armas empunhadas se resumem ao fanatismo, à violência e à ignorância. Nessa batalha, a causa nobre que lhe dá propósito passa para um segundo plano onde os seus promotores criam condições para a abastardar e os cépticos ganham desculpa para a descredibilizar. Ao mesmo tempo, o espaço deixado desabitado debaixo do foco da relevância é ocupado pelos infames métodos filhos da mistura entre o fanatismo autoritário, o impulso violento e a soberba ignorante.

Para os soldados desse exército, a ideia não é convencer ou persuadir: é impôr. O propósito não é debater e clarificar: é calar e coagir. A missão não é contrariar o preconceito: é trocá-lo por outro. O resultado procurado não passa por ser a obtenção de uma liberdade maior: pretende criar condições para a diminuir a favor de novos autoritarismos. Essa luta travada com armas indignas, sob a capa de um certo novo anti-fascismo, só é anti-fascista no nome. Os seus protagonistas vivem numa atitude discricionária e prepotente, em que não há outra verdade que não a sua. Se alguém questionar é desqualificado, atacado e silenciado. Não será esta atitude, ela própria, fascista?

Os novos fascistas, do alto da soberba ignorante de quem não quer legitimamente apenas a mudança do mundo e participar na construção da História do que ainda há-de vir, mas ambiciona sobretudo alterar a História edificada ao longo de anos, épocas, contextos, ao sabor de uma reescrita pejada de anacronismos e descontextualizações adequadas aos valores dos nossos dias e, sobretudo, vergadas à subjectividade dos seus próprios valores.

A vaga de vandalismo contra estátuas ou monumentos e de vilipêndio do seu significado histórico a que fomos assistindo por esse mundo fora, foi sinal dessa degeneração ignorante, que desagua numa irónica semelhança entre as partes: para além de várias das estátuas vandalizadas serem de pedra, a generalidade dos vândalos que as atacam comportam-se como autênticos calhaus.

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Em Portugal, o Padre António Vieira foi a vítima mais visível destes comportamentos.

Mas tivemos sinais de que o mundo não está irremediavelmente perdido às mãos destes pequenos tiranos ao ver, ler e ouvir a generalizada indignação que se estende desde o cidadão comum até às autoridades e organizações públicas. Se é aviltante ver a estátua do Padre António Vieira suja de ignorância e revisionismo pela iniciativa de meia dúzia de pregadores do ódio e da ignorância, é um descanso ver que as instituições ainda se prestam a fazer valer o seu peso quando ordenam que a mesma acorde limpa e a memória histórica de honra lavada. E é um sinal de conforto que o balanço entre o certo e o errado ainda vá encontrando o equilíbrio no ponto certo quando vemos que contra a barbárie não há esquerda nem direita, mas um amplo consenso entre Presidência da República, Governo e partidos. Bem, quase todos os partidos.

O prolongado silêncio que o Bloco de Esquerda dedicou à vandalização da estátua do Padre António Vieira, só interrompido para censurar as más consequências que a mesma poderia emprestar a certas boas causas e não o acto em si mesmo e as suas implicações, que cheirou intensamente a cumplicidade, lembra-nos que o partido tem interpretado fielmente o facto de ser o resultado de uma soma de partidos extremistas e radicais que sempre viveram do lado de fora do perímetro partidário mainstream e da responsabilidade política e institucional. Hoje, após mais de duas décadas como produto mediático e eleitoralmente fértil da soma desses partidos, o Bloco não perdeu a tradição extremista e radical que os partidos de origem cultivaram e, ainda que incluído no circuito parlamentar, mantém-se com os tiques irresponsáveis e o discurso de partido marginal ao sistema. É lá que há muito vemos a postura divisionista que escolhe a dedo os bons e aponta a dedo os maus, a sobranceria nos gestos e na palavra, o moralismo na tentativa de educação forçada das massas, a desconsideração pessoal a propósito de ideias diferentes, a pretensão de ser dono da virtude e o expurgador do mal da humanidade, o preconceito contra quem pensa diferente.

Façamos justiça ao Bloco de Esquerda: a sua reacção temerária e comprometida perante a vandalização da estátua do Padre António Vieira tem o provento de nos lembrar que a presença na política portuguesa da tolerância selectiva da violência, da discriminação e do discurso de ódio contra certos grupos sociais, acontecimentos históricos ou agendas políticas, é bem mais antiga do que o aparecimento do Chega e de André Ventura.