Os gritos de uma turba incendiária de radicais com graves insultos e acusações contra uma das mais altas figuras do Estado, importunando o seu almoço e, sobretudo, importunando o seu bem-estar e o seu carácter, só podem ser qualificados como uma miséria moral condenável sem defesa possível. Esta é uma premissa básica de qualquer democrata e, sobretudo, de qualquer cidadão decente, tolerante e moderado, certo? Creio que sim. Mas se assim for, talvez sejamos menos decentes do que pensamos ou haja entre nós menos pessoas moderadas e tolerantes do que seria desejável.

É que a propósito deste episódio, a memória ofereceu-me as imagens de outro que, tendo acontecido em 2013, aconteceu apenas no ontem dos tempos que correm e não nos permitem desculpas de esquecimento ou da mudança significativa de circunstâncias. Nesse episódio, essa qualificação de miséria moral indefensável e de condenação clara e unânime não serviu para dar tom à maioria das opiniões que se dispuseram a ser dadas quando outra alta figura do Estado foi também recebido por um bando de manifestantes não menos radicais com um animal enforcado (cuja espécie, só por acaso, coincidia com um dos seus nomes) a sugerir aquilo que é fácil perceber que queriam sugerir.

Podia ter-se de Passos Coelho, a vítima desse episódio, a péssima imagem que se quisesse, que isso não podia permitir escorregar pelas areias movediças da banalização ou da justificação da gravidade dos acontecimentos. E é fácil evitar a escorregadela: basta, lá está, ser um cidadão decente, moderado e tolerante. O módico de princípios que permite também condenar os actos de que Ferro Rodrigues foi vítima sem ter, por ele ou a pela sua persona política, algum tipo de simpatia, como é o meu caso.

Quem, na altura, preferiu dar prioridade a ódios políticos e não foi capaz de condenar tal acto miserável, não pode agora fazer-se surpreendido. A normalização destes comportamentos nasce, muitas vezes, nos silêncios oportunistas que muitos decidem fazer. E quem os faz tem culpa no cartório. E não se pode queixar quando o tiro faz ricochete. Afinal, nem de propósito, quem com ferros mata, com ferros morre.

Este artigo não pretende, como creio estar evidente, ser um exercício de whataboutism já que, para o ser, precisaria que eu utilizasse o episódio ocorrido com Passos Coelho para justificar o episódio que teve Ferro Rodrigues como protagonista. E o que se pretende é precisamente denunciar a normalização banalizadora e justificativa desse tipo de episódios. Todos. Trata-se de traçar uma linha entre o razoável e o inaceitável e não entre o que me dá jeito e o que não dá.

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