Estive para escrever sobre o debate presidencial Trump-Biden, mas julgo que os americanos são capazes de aguentar uns tempos sem a minha opinião. Afinal, já contam com inúmeras análises de proveniência lusitana susceptíveis de os esclarecer devidamente, incluindo as dos prof. Costa Ribas e as daquele rapaz, que em 2016 lançou um livrinho a antecipar a presidência de Hillary Clinton.

Também pensei em escrever sobre a luta do Ministro dos Transportes para manter a TAP nas mãos dos portugueses. Mas uma simples crónica não seria agradecimento bastante pelos esforços do fulano, que prometeu dividir por todos nós os lucros da companhia, no dia, lá para 2860, em que a TAP os der. Os invejosos, e anti-patriotas, criticam o dinheiro que a TAP custa aos contribuintes e ignoram o dinheiro que lhes poupa: só esta semana, a TAP adiou a compra de 15 aviões e poupou 800 milhões. Para a semana, adia-se a compra de 30 e embolsam-se 1.600.000.000€. De uma empresa assim vale a pena ser accionista.

Por fim, quase escrevi sobre o advento da “linguagem inclusiva” às Forças Armadas. Mas um momento histórico merece celebrações e não textos. Se há coisa de que a tropa necessita é de moderação na linguagem. Os leigos é que não sabem das indecências que se passam lá dentro: há documentos militares que, sob a assinatura, legendam “o requerente”, em lugar de “o/a requerente/o/a”. E, pelos vistos, há instrutores malformados que berram: “Porta-te como um homem!”, em lugar de “Porta-te como homem, mulher, género fluido ou o que te aprouver, se não for incómodo, sim?” E depois querem ganhar guerras.

Na verdade, não vou escrever sobre nada. Vou apenas relembrar uma insignificância, tão insignificante que finta a atenção do público, tipicamente ocupado com bola, a ninfomaníaca da CP, o distanciamento social e outras urgências. É o seguinte: em Portugal, nos últimos meses e nos próximos, morreu e morrerá de morte evitável uma quantidade talvez inédita de gente. A Inquisição local matou mil e tal criaturas. A Grande Guerra, umas 10 mil. A Guerra Colonial cerca de 8 mil. De Março a Agosto de 2020, morreram 4 ou 5 mil portugueses que não deviam ter morrido. A diferença, face às calamidades anteriores, é que esta calamidade ainda não terminou, e não se adivinha quando terminará.

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Não falo da Covid. Falo do combate à Covid. Desde Março, a Covid causou 2 mil vítimas, praticamente todas pacientes de doenças graves e com idades médias equivalentes à esperança de vida (e na maioria abandonadas nos “lares”). No mesmíssimo período, o combate à Covid matou, convém insistir, 4 ou 5 mil. Ou seja, 4 ou 5 mil desgraçados foram desta para melhor porque as “autoridades” optaram, e contra a razoabilidade básica continuam a optar, por reservar os serviços de saúde para o diagnóstico e o tratamento dos casos de Covid. No processo, facultativo e deliberado, mais de um milhão de consultas e cirurgias ficaram adiadas, ou provavelmente canceladas em situação de falecimento prematuro. As contas não são complicadas. No final, as contas serão terríveis.

É claro que se toleraria o erro inicial das “autoridades”, a princípio confrontadas com uma doença de consequências desconhecidas. Aconteceu noutras paragens. O problema é que, depois de esclarecido o carácter comparativamente moderado da Covid e os custos – clínicos, nem me refiro aos económicos – da histeria, as “autoridades” teimaram no erro e teimaram na histeria. Aliás, reforçaram a histeria para não admitir o erro – e para estender a prepotência. Diariamente surgem regras e comunicados, sempre anedóticos, que visam aumentar o pânico. Agora está em curso uma campanha da DGS em que “celebridades” caseiras tentam assustar os jovens com o risco da Covid: “Agora o alvo és tu!”. O alvo desta sinistra imbecilidade, querem eles dizer. Os jovens não sofrem com a Covid. O alvo, de facto, são os que sofrem de cancro, do coração ou acidentes vasculares, e que se vêem entregues ao destino, na medida em que semelhantes maleitas não possuem o glamour do fascinante coronavírus. O problema é que isto não é um problema: é, repito, uma escolha, e nesse sentido um crime.

Não é um crime oculto. É verdade que a generalidade dos “media”, atafulhada com os 15 milhões em subsídios, reproduz a propaganda oficial e massacra o consumidor com a Covid. Porém, até os “media” domesticados lá informam, nas entrelinhas e nos rodapés, dos adiamentos nos hospitais, das linhas de atendimento que não atendem, dos mortos em excesso, da incúria, da negligência e da irresponsabilidade absolutamente grotesca de tudo isto. Sucede que o português médio não liga. Não liga. Enquanto ele próprio, ou um familiar, não forem acometidos de um badagaio sério e votado ao desprezo hospitalar, o português médio continuará a preocupar-se exclusivamente com a máscara na cara e o álcool-gel nas mãozitas, todo contente com o seu civismo.

O civismo do português médio é nulo. O brutal desinteresse que por aí vai perante a desgraça de tantos concidadãos é uma doença muitíssimo pior que o vírus da moda. Não são refugiados da Papuásia, que de longe enfeitam os “telejornais” e as boas consciências. É a senhora por quem passamos na rua, o homem a quem dizemos bom dia, a senhora que nos atende na confeitaria. Ou atendia: alguns dos nossos vizinhos estão a morrer de desleixo e ninguém se importa com tamanha tragédia. Ninguém se zanga com a cáfila que consente a tragédia. Ninguém liga. Enfim, dizem que é o “novo normal”. O “novo normal” é conversa de bandido, e apontar exemplos estrangeiros da barbárie é acentuá-la. Uma sociedade civilizada não deixa morrer jovialmente pessoas que teriam cinco, vinte, quarenta anos pela frente.

E não, não é o comportamento vergonhoso das “autoridades” que alimenta a indiferença. É a indiferença que permite o comportamento vergonhoso das “autoridades”. E que permitirá que estas, e os senhores que as representam, saiam impunes da chacina que, por estupidez e desumanidade, provocaram. Milhares de mortos. Um crime sem castigo. Um país sem cura.