Há poucos dias tivemos a notícia de que o bom e generoso governo das esquerdas unidas, que terminou a austeridade com que as pessoas más da direita (por escolha inteiramente livre) haviam oprimido as populações, sempre tão lesto a jorrar dinheiro para cima das suas clientelas, tratava crianças doentes com cancro no corredor do Hospital de São João. Vai daí, o humorista e comentador José Diogo Quintela escreveu uma crónica satírica criticando precisamente o mais importante: as condições em que se tratam crianças doentes oncológicas.

A crónica não era das mais bem conseguidas do humorista, de facto. Em todo o caso, não interessa, porque o sururu que se gerou não foi de críticos literários de pequenas peças jornalísticas.

O sarcasmo do cronista era evidente (desde logo pelo absurdo que se poderia retirar num significado literal), mas isso não impediu espasmos agonizantes de indignação pelas redes sociais por pessoas que não entenderam que, de facto, JDQ não (repito: não) estava a chamar picuinhas aos pais das crianças doentes oncológicas por se estarem a queixar quando estavam bem melhor que na Síria. Tempo depois, a maioria percebeu que era sarcasmo (de boa qualidade ou de má, não interessa), mas muitos continuaram a senda anti comentador. Afinal é um humorista de direita e há quem à esquerda não lide bem com estas excentricidades. O humor deve ser todo, sem exceção, dirigido aos demónios da direita.

Que foi de mau gosto, que com doentes oncológicos não se brinca (como se se tivesse brincado), que não tinha piada (pois não, nem era para ter), que isto e aquilo e aqueloutro. Pessoas que assistiram impávidas às notícias das crianças doentes, fizeram de súbito as pazes com a sua capacidade de revolta e ei-las que se revoltaram contra o atroz crime de José Diogo Quintela. Chegaram a comparar ao tweet de Quadros sobre Laura Ferreira, como se esse tweet usasse a falta de cabelo de Laura para criticar algum mau tratamento que tivessem dado à senhora (o que seria comparável), em vez de para lhe atacar o marido. Pela minha parte, várias pessoas nas redes sociais me destrataram e desamigaram, que o assunto (a crónica, não o tratamento das crianças) era sério.

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À involuntária falta de capacidade de compreensão de textos demonstrada pelos utentes das redes sociais (que explica muita coisa – nas redes sociais e no país), temos também de acrescentar a desconversa de quem sabe muito bem o que está escrito mas escolhe desentender para marcar pontos políticos e atacar um adversário. Esta característica sublima-se em pessoas com educação acima da média que gostam de reduzir a realidade às partes mensuráveis e à letra dos documentos escritos para melhor a deturpar.

Num texto (ou num post ou num tweet), afinal já não há necessidade de entender o contexto (por exemploa geografia e o momento histórico em que foi produzido, ou que tipo de informação se está a dar nas redes sociais) nem o género nem os artifícios literários. O fogo que arde sem se ver? O autor estava de certeza a reproduzir a experiência de um invisual. Nos factos, existe apenas aquilo que pode ser reproduzido em ficheiro áudio ou vídeo ou está assinado e reconhecido num notário. Na História, bem, as narrativas sobre o passado são quase todas imaginadas. Só factos quantificáveis e reproduzíveis contam. Meros indícios sobre a ocorrência de algo são mistificações de pessoas impressionáveis; o espírito das linhas escritas, mesmo se evidente, é para ser retorcido quanto se quiser.

Trump conspirou com a Rússia? Mas o que interessa várias pessoas da sua campanha terem comprovadamente solicitado ou fornecido ajuda a oficiais russos? Há alguma gravação entre Trump e Putin a combinarem a tramoia? Não? Então nada se passou.

O Holocausto? Não há nenhum documento com números nem intenções declaradas de Hitler. Só morreram meia dúzia, provavelmente, e de difteria que os guardas dos campos de concentração com toda a certeza tentaram tratar. Imagens das câmaras destruídas, relatos de sobreviventes, diários enterrados de prisioneiros, o que é isso? Algum morto confirmou que morreu gaseado?

Tian’anmen? Bom, ainda há poucos anos o deputado do PCP Miguel Tiago garantia não ter havido massacre porque não existem ‘provas’? Estão a ver? Basta não se publicitar números de mortos nas calamidades de facto ocorridas para que estas sejam apagadas da existência. Catita, não é?

Discriminação de mulheres nas carreiras profissionais e nos ordenados? Mas há algum homem que tenha assumido alguma vez por escrito que paga menos ou deixou de promover uma mulher por gostar de manter o status quo? Até se dizem feministas. Por acaso só lhes apareceram à frente mulheres incapazes. Os inúmeros papers e livros que mostram existência de preconceitos nada valem perante a autoavaliação pública que os decisores fazem.

O duplo pagamento das viagens aos deputados insulares? (Com a honrosa exceção de Rubina Berardo.) Há alguma prova testemunhal de que pretendiam fazer pouco dos contribuintes? Sabemos somente que os deputados cumpriram a lei e que, na verdade, devem ser celebrados por tanta obediência legal.

E Sócrates? Também não dei por nenhum vídeo de Sócrates a combinar com Santos Silva o esquema dos pagamentos e dos empréstimos. Pelo contrário. Por estes dias apareceram gravações de Sócrates gritando e esbracejando coisas que alegadamente estão ausentes de uma investigação respeitável. Então se o apartamento e a conta estavam em nome do amigo, está tudo explicado. Coincidências de pagamentos, primos, amigos, empréstimos, rasto do dinheiro, conversas e tom das conversas a ordenar ‘fotocópias’ – isso são invenções de mentes hiperativas.

Fala-se muito, e com razão, da ditadura do politicamente correto. Mas esta iliteracia – a autoinduzida e a involuntária – bem como a determinação de negar a realidade também contribuem para a imbecilização dos debates.