Os alunos que este ano estão a frequentar o que outrora se designava como 4ª classe podem não saber fazer uma conta de dividir ou ler com fluência mas vão certamente ter direito a um doutoramento honoris causa pelo ISCTE em lutas dentro de aparelho de estado. Neste mês de Janeiro de 2023, à segunda-feira ou noutro dia a gosto, não há aulas porque o S.T.O.P. – Sindicato de Todos os Profissionais da Educação convoca greves como forma de contestação do regime de recrutamento de professores. Já na terça ou quiçá na quarta é a vez dos filiados na Fenprof – Federação Nacional dos Professores fazerem greve ao sobretrabalho e às horas extraordinárias. Na quarta ou talvez na sexta os alunos não têm o primeiro tempo porque o SIPE – Sindicato Independente dos Professores e Educadores convocou uma greve parcial que visa contestar propostas de alteração ao regime de recrutamento… E assim sucessivamente até ser sábado.

O velho horário escolar está a ser substituído pelo calendário das greves decididas pelos diferentes sindicatos. Enviar os filhos para a escola pública em Portugal é fazê-los participar numa experiência antropológica que parte de uma pergunta-base: pode uma geração não imbecilizar após anos sucessivos numa escola que se esqueceu que foi criada para ensinar?

Lembro a quem ainda não o tiver percebido: está agora a acabar a escola primária uma geração que não sabe o que é uma escola a funcionar regularmente. Para tornar óbvia esta anomalia dêmos um nome aos protagonistas desta alienação escolar. Chamemos-lhe João, Catarina, Maria. Eles entraram no que se chamava outrora primeira classe no ano lectivo de 2019/2020. O seu último dia de aulas normal aconteceu a 12 de Março de 2020. Nesse dia o Governo anunciou o fecho de todas as escolas a partir da segunda-feira seguinte, 16 de Março, até 9 de Abril. Na verdade eles já não voltaram à escola no dia seguinte, 13 de Março, e também não voltariam no dia 9 de Abril.

Eles foram para casa com um monte de fichas. Os professores acompanhavam on line a aprendizagem. E eles desenhavam o arco-íris em páginas onde os pais acrescentavam uma frase a dizer que ia ficar tudo bem.

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A 9 de Abril veio a confirmação do que já se esperava: “o ensino básico permanecerá até ao fim do ano letivo no modelo de ensino não presencial, com recurso às metodologias digitais que será reforçado com o apoio de emissão televisiva de conteúdos pedagógicos

A Catarina, o João, a Maria… não voltaram à escola até ao final desse ano lectivo. O mundo estava em estado pandémico. Rapidamente se tornou óbvio que não ia ficar tudo bem, que as aprendizagens com as “metodologias digitais” não levavam a parte alguma mas, repetia-se com fé, no próximo ano lectivo os alunos iam recuperar. E então sim ia ficar tudo bem.

Começou o ano lectivo 2020/2021. O João, a Catarina e a Maria estavam na segunda classe, segundo ano ou o que se lhe quiser chamar. O ano lectivo começou a 14 de Setembro de 2020. As aulas eram presenciais mas com obrigatoriedade de uso de máscara nas escolas. Havia também regras para circular nos espaços da escola, frequentar a cantina ou praticar ginástica. Às vezes a escola parecia um manicómio mas tudo era melhor do que aquilo que se seguiu.

O início do segundo período foi adiado de 3 para 10 de Janeiro de 2021. Chamou-se a este adiamento “semana de contenção de contactos”. Se a Catarina, a Maria e o João frequentassem escolas privadas poderiam ter tido aulas à distância. Na escola pública não foi essa a opção. As escolas reabriram a 11 de Janeiro de 2021 quando já só se falava do risco da nova variante da COVID. O país vivia na exaltação da pandemia: apesar de já existirem vacinas e de os médicos sul-africanos, os primeiro a lidar com a nova variante, a Omicron, afirmarem que a mesma se propagava muito mas não era grave, a 21 de Janeiro de 2021, as escolas voltavam a fechar.

Desta vez não haverá ensino à distância, nem aprendizagens digitais. O então ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, avisou os privados: “Esta é uma interrupção letiva para todos” “este espreitar sempre a exceção é o que tem causado tantos problemas em termos societais”. Ou seja o problema societal do João, da Catarina e da Maria não era estarem a viver um processo de desescolarização mas sim o facto de os estabelecimentos de ensino privado procurararem assegurar aulas on line. São quinze dias de interrupção “para todos” que, diz-se, serão depois compensados no calendário escolar.

A 8 de Fevereiro de 2021 voltaram as aulas mas apenas na versão on line. As escolas mantinham-se fechadas. Só a 15 de Março as crianças voltarão à escola. Uma semana depois, a 22 de Março, o Decreto-Lei n.º 22-D/2021 anula a realização das provas de aferição do 2.º, 5.º e 8.º anos de escolaridade do ensino básico e das provas finais do ensino básico do 9.º ano de escolaridade.

Estes cancelamentos são justificados com o propósito de “contribuir para um quadro de justiça e equidade”. Portanto não procurar avaliar o que o João, a Catarina, a Maria e demais crianças tinham ou não aprendido nesses dois anos era uma forma de “contribuir para um quadro de justiça e equidade”. Como a título de amostra algumas escolas efectuaram as provas pode dizer-se que os resultados não revelaram nem equidade nem justiça mas sim enormes dificuldades: no 2º ano de escolaridade muitos dos alunos não conseguiram analisar textos nem distinguir verbos ou sequer identificar palavras no plural.

Mas certamente que no ano lectivo seguinte, o de 2021-2022 iria então ficar tudo bem. Felizmente continuavam a não faltar lápis para desenhar tanto arco-íris!

O ano lectivo 2021-2022 começa com máscaras obrigatórias e regras sobre distanciamento. Mas as aulas eram presenciais. Contudo se alguém tinha ilusões sobre a possibilidade de o João, a Catarina e a Maria terem finalmente uma escolaridade normal logo as perdeu. Porquê? Porque se passou da fase em que a escola fechava para combater um vírus, que por sinal pouco ou nada afecta as crianças, para a fase em que a escola fecha porque os seus funcionários estão em luta com o ministério.

Assim o terceiro ano lectivo do João, da Maria e da Catarina começou entre os dias 14 e 17 de Setembro de 2021 mas não começou de qualquer modo: começou a com a luta de de professores e pessoal não docente contra a municipalização da educação, greve essa convocada por um então pouco conhecido Sindicato de Todos os Professores (STOP). A bem dizer a escola pública é desde então uma escola sempre em luta pois não só ainda não tinha acabado a luta contra a COVID – em Janeiro de 2022 os alunos só voltam à escola a 10 porque a escola estava novamente em luta contra a Covid – como o PCP e o BE procuravam ganhar na rua (que é como quem diz nas escolas) o discurso de luta que tinham calado enquanto fizeram parte da solução de governo na chamada geringonça. A FENPROF entrega sucessivos avisos de greve para o que designa como sobretrabalho, designação que abarca tudo mas mesmo tudo o que não seja actividade lectiva propriamente dita.

Entretanto João Costa, que passara de secretário de Estado a ministro da Educação, anunciava que os alunos portugueses tinham melhorado em 2022 as suas competências em comparação com o último ano antes da pandemia, 2019. O facto, único no mundo, está ao nível do milagre ou da fantasia.  Na prática  andamos a medir os conhecimentos destes jovens com uma régua elástica  como denunciou Susana Peralta.

Quando o ano lectivo 2022/2023 começa, o João, a Cataria e a Maria estão no quarto ano do ensino básico como agora se diz (ou dizia, que estas terminologias estão sempre a mudar). Esperava-se que no final deste ano tivessem operacionalizado as aprendizagens essenciais, por sinal cada vez mais reduzidas e doutrinárias. A aprendizagem em que de facto estão a progredir é no designado processo de desescolarização em curso: o ano começou com perturbações. Desde 24 de Outubro que a FENPROF  retomou as greves ao sobretrabalho e às horas extraordinárias. O STOP faz greves por tempo indeterminado e o Sindicato Independente dos Professores e Educadores (SIPE) faz greve mas só a certas horas. Ontem, 14 de Janeiro, os professores desfilaram em Lisboa. Amanhã 16, começa uma greve por distritos que se prolongará por Fevereiro e sempre terá o mérito de fazer os alunos interessarem-se pela aprendizagem essencial do mapa de Portugal.

As associações de pais pedem serviços mínimos mais por não terem onde deixar os filhos do que por eles estarem a perder ainda mais aprendizagens. Afinal isso não será um problema pois no final do ano lectivo provas feitas à medida darão conta do crescente sucesso dos alunos das escolas públicas em Portugal.

Os sindicatos que dizem que lutar é estudar e que nunca abrem a boca pela degradação do ensino, pela burocratização das suas funções e progressiva opacidade sobre a qualidade do ensino ou pelas formas como são coagidos a dar números para o sucesso, prometem mais luta pela dignificação dos mesmos professores que eles proletarizaram.

O Governo, preocupado com o aparecimento de greves “atípicas”, enrola-se na armadilha que a si mesmo montou.

Quanto ao João, à Maria e à Catarina o caso é tão só este: as suas famílias conseguem colocá-los em escolas privadas? Pagar explicações? Estudar com eles em casa? Se assim não for só lhes resta acreditar em milagres e esperar que as suas crianças não integrem o contingente anunciado de uma geração perdida.