Nos últimos dias, correu no Twitter o seguinte texto sobre os talibãs: “A concretização da invencibilidade (enquanto um estiver vivo, haverá resistência), da irmandade, da crença na bondade do que estão a fazer. Se isto desculpa atrocidades? Não. Mas torna-os dignos de um segundo olhar. E, para já, não houve atrocidades.” [corrigi os erros de português]

Adivinhe quem escreveu isto: a) Um talibã; b) Dois talibãs; c) Um discípulo de Charles Manson; d) Charles Manson; e) Um comediante; f) Ninguém. A resposta certa poderia ser qualquer das opções anteriores. Não é nenhuma delas. A autoria desse momento apetitoso para a psiquiatria é uma senhora que, ao que me disseram, é advogada e assina uma coluna no “Expresso”. Uma investigação mais aprofundada, que me demorou cerca de meio minuto, acrescentou que a senhora é do Bloco de Esquerda e aparece em retratos sorridentes ao lado do dr. Costa. Em suma, o texto acima foi escrito pelo exacto tipo de criatura que se esperaria que o escrevesse.

A criatura em questão, aliás, não se satisfez com a primeira exaltação dos talibãs e, a título de polimento, juntou-lhe esta: “Os talibãs afirmam que actuarão de maneira diferente, que não haverá violência, que, dentro da lei islâmica, respeitarão os direitos das mulheres.” Sei que continua a parecer sátira. Sabemos que não é. Existem mesmo espécimes que não resistem à sedução de um bando de selvagens devotos da opressão, da tortura e da morte. Chamam-se comunistas e é indiferente a estirpe a que pertencem.

A tal senhora, que não nomeio para não publicitar trogloditas, não está sozinha. Ao longo da semana, formal ou informalmente, surgiram por aí inúmeras manifestações de relativização ou simpatia face aos talibãs. Do PCP ao BE, passando pelas zonas menos envergonhadas do PS actual, não se pouparam esforços para celebrar a derrota do “neoliberalismo” e a tomada de Cabul pelas forças “progressistas” (cito um candidato autárquico). E não, não estamos a falar de um daqueles movimentos patetas que prescrevem a virgindade antes do casamento. Trata-se dos talibãs, os bons e velhos talibãs das barbas e do surro, das castrações públicas e da escravização das mulheres, dos genocídios literais e simbólicos, que de resto já retomaram as tradições que os celebrizaram.        

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Não há nada de novo. Se de um lado temos um psicopata a degolar infelizes e do lado oposto um infeliz degolado, os comunistas nunca se baralham na escolha. Lembram-se da última vez em que os comunistas hesitaram a decidir entre o totalitarismo e a democracia? Aconteceu há oitenta anos e apenas porque puderam opor-se a um regime assassino em prol de um regime assassino similar. Caso os nazis não tivessem violado o pacto germano-soviético, os comunistas negariam hoje o Holocausto com a ênfase com que negam o Holodomor, o Gulag e a bestialidade que calhar.

Nem sequer é fidelidade ao leninismo: é repulsa a tudo o que for suspeito de índices mínimos de liberdade, decência e tolerância, o que em geral coincide com os sistemas ocidentais. Talvez seja engraçado recordar que, em 1996, os talibãs que os comunistas agora acarinham arrastaram pelas ruas o cadáver amputado do sr. Najibullah, em tempos o matraquilho do Kremlin na presidência do Afeganistão. As recordações abundam. Recentemente, notei numa destas crónicas a infalível preferência dos comunistas pela barbárie em detrimento da civilização. É facílimo de acertar no Totobola dos tarados: Palestina vs. Israel – 1; Argentina vs. Reino Unido – 1; EUA vs. Iraque – 2; Terrorismo vs. Humanidade – 1; etc. Se repararam, limitei-me a referir situações em que o encanto dos comunistas vai inteirinho para governos, grupos ou filosofias inequivocamente f-a-s-c-i-s-t-a-s, louváveis logo que ameacem o que merece ser preservado. Dos governos, grupos ou filosofias assumidamente comunistas não vale a pena falar. Vale a pena constatar que, havendo possibilidade de miséria e massacre, os camaradas não desiludem.

A propósito, a senhora que reclama compreensão e “um segundo olhar” para tresloucados aproveitou o espaço no “Expresso” para esclarecer: “Os Talibãs, no que os opôs e opõe aos Estados Unidos, têm algumas razões que devem ser ouvidas.” Embora lhes ouça as razões, a senhora não aprecia os talibãs por eles próprios e sim por serem inimigos dos EUA e a antítese do “espírito” que os EUA, e afinal o Ocidente em peso, representam. O evidente fervor sanguinário é despiciendo se comparado com o abençoado ódio ao mundo em que vivemos – nós e, inexplicavelmente, fanáticas do calibre da tal senhora.

É isto que custa entender, a insistência dos talibãs de trazer por casa em frequentar sociedades que detestam. Conheço (à distância, salvo seja) poucos comunistas que se mudaram da Europa ou da América do Norte para Cabul, Gaza, Caracas ou Pyongyang. Nem sequer nas férias. A que pretexto andam por cá a suportar o imperialismo, o materialismo, o consumismo, o neoliberalismo, o machismo, a homofobia e os abusos climáticos se podiam viver felizes num dos paraísos alternativos à disposição? É verdade que Portugal está a aproximar-se rapidamente dos paraísos, mas ainda falta um bocadinho.

Alguns, talvez apressadamente, sugerem que os comunistas não se vão embora na medida em que gostam de usufruir das vantagens do capitalismo e, altruístas, deixar que outros sofram as maravilhas de um despotismo a sério. É uma teoria. A minha teoria é diferente: os comunistas permanecem aqui para, altruístas, nos alertar acerca dos perigos do “fascismo”. O “fascismo” é muito perigoso, sobretudo quando é imaginário. Quando é real, há uma forte hipótese de os comunistas o apoiarem. Contra nós.