Drogas leves, prostituição, eutanásia, aborto e barrigas de aluguer são alguns dos temas fraturantes sobre os quais podemos ter longas conversas, às vezes até discussões acaloradas, em família ou com amigos, sem nunca chegarmos a um consenso.
Muitas vezes caímos na tentação de definir uma opinião meramente baseando-nos nas nossas necessidades pessoais, crenças religiosas e ideológicas. Mas quando se legisla e se opta politicamente é fundamental ter um pensamento pragmático, analisando os benefícios e malefícios de cada medida para a sociedade como um todo, mas também humanista, atribuindo a devida importância à dignidade e racionalidade humanas.
A letra da lei, a análise das exceções, das circunstâncias, de quem decide e de quem efetua, não são meros detalhes, são a grande diferença para muitos serem a favor ou contra. A legalização das chamadas barrigas de aluguer, realizada em 2016, demonstra isso mesmo. A lei que tornou possível que uma mulher dê à luz no lugar de outra e renuncie aos seus poderes e deveres de maternidade esteve pouco tempo em vigor porque o Tribunal Constitucional considerou algumas das suas normas inconstitucionais, nomeadamente o facto de não contemplar a possibilidade do arrependimento da gestante depois do nascimento, de ter estabelecido como regra o anonimato dos dadores e da gestante de substituição, e de considerar a lei demasiado indeterminada.
Em Portugal, a interrupção voluntária da gravidez foi legalizada por referendo realizado em 2007 e a despenalização da eutanásia foi recentemente aprovada na generalidade no parlamento. Esta última poderá ainda ser sujeita a um referendo, que tendo vantagens e desvantagens, propiciará certamente um debate alargado e a consciencialização da população antes do salto final. Um debate informado, moderado e pragmático será sempre um passo importante para se decidir sobre temas sensíveis, tão ligados à nossa liberdade individual e coletiva. Ganhando o sim, a legitimidade e a aceitação democrática será maior e assim também a capacidade de concretizar a medida.
Se essa liberdade de escolha pode ser considerada uma conquista, será também importante garantir escolhas informadas e preparar a sociedade para lidar com estas questões complicadas, de vida e de morte. Imagine-se a despenalização ou legalização destes temas há 100 ou 200 anos atrás. Será por isso crucial disseminar o conhecimento pela sociedade e legislar para garantir essa passagem de informação, inclusivamente por quem presta esses serviços.
O consumo de drogas deixou de ser considerado um crime em Portugal desde 2001, passando a ser uma contraordenação social. Mais importante, as instituições passaram a olhar para um consumidor de drogas, especialmente as pesadas, como um ser humano a necessitar de ajuda e de apoio especializado. Essas alterações legislativas aliadas à implementação de medidas humanistas foram promotoras da redução do consumo de drogas pesadas e de doentes com HIV em Portugal.
Não marginalizar esses seres humanos e oferecer apoios, nomeadamente informação, tratamento por substituição de substâncias, material esterilizado, testes de HIV, exame das substâncias consumidas, são medidas muito benéficas para os usuários de droga, mas também para a saúde publica e para a diminuição do crime.
Em 2018, foi aprovada a legalização do uso da canábis para efeitos medicinais. Desde essa data pelo menos 5 empresas já obtiveram autorização do Infarmed para cultivar, importar e exportar a planta da canábis para fins medicinais, estimando-se um impacto muito positivo para a nossa economia resultante destas atividades.
Neste âmbito está ainda por concretizar a legalização do uso da canábis para fins recreativos. Essa legalização poderá gerar mais receita fiscal para o Estado como também contribuir para um maior controlo da quantidade e qualidade consumida. A estas vantagens acrescerá o benefício de se retirarem fluxos financeiros das mãos do crime, potencialmente fortalecedores de outros negócios ilegais.
Vantagens semelhantes poderá apresentar uma eventual legalização da prostituição, retirando dinheiro ao submundo, permitindo encaixar impostos, e regular uma atividade com sérios impactos na saúde pública. No entanto, ao falarmos de prostituição estamos a tratar de um tema muito sensível, relacionado com a sexualidade, com a venda do corpo, e com o proxenetismo.
No mundo sobressaem duas visões antagónicas, a que considera a prostituição um crime e a que está disponível para a enquadrar legalmente como um trabalho. Assim, opõe-se os modelos de abolicionismo e proibicionismo aos da legalização e regulamentação da atividade.
Em Portugal pratica-se o abolicionismo, penalizando-se os que cometem o crime de lenocínio, ou seja, os proxenetas, mas deixando um vazio legal quanto aos restantes intervenientes. Na Suécia e na França, o abolicionismo vai mais além e considera o cliente um criminoso, procurando reduzir a procura destes serviços. O proibicionismo, a vigorar por exemplo na Rússia, nos EUA e na China, considera uma prostituta uma criminosa, pretendendo acabar de vez com essa atividade.
A regulamentação / legalização, praticada na Holanda e na Alemanha, considera a prostituição um fenómeno impossível de erradicar e diferencia a coação de terceiros da opção livre e individual de quem decide prostituir-se e de quem procura esses serviços, despenalizando os intervenientes e permitindo que os profissionais do sexo sejam considerados trabalhadores, pagando impostos e segurança social.
Para alguns estudiosos deste tema a Nova Zelândia adotou um modelo equilibrado, assente na promoção da segurança e da saúde da pessoa que exerce a atividade. No outro extremo do mundo, a legislação prevê requisitos de saúde, trocas de informação, limitação da publicidade e dos locais de exercício da profissão, mecanismos de proteção contra a coação e o tráfico, bem como de denuncia de abusos.
Seja como for, o consumo das chamadas drogas leves e a prostituição são mais velhos que a Sé de Braga e estão à vista impune de todos, por isso não vale a pena tapar o sol com a peneira. Mais vale tratar destes temas com maturidade democrática, pragmatismo e humanismo. Cada um poderá depois ter a sua opção moral, religiosa, espiritual, intelectual ou racional e optar por fazer ou não um destes atos, mas o Estado não se deve demitir de regular sobre os mesmos, numa abordagem sistémica e humanista, preocupada com a saúde publica e económica do País.
7 de março de 2020