A primeira reacção ao atentado contra Donald Trump foi a negação. Uma notória televisão americana informava: “Discurso de Trump interrompido pelos agentes de segurança”. Minutos passados, a mesma televisão entrava em detalhes: “Agentes de segurança retiram Trump de palco após ele cair durante um comício”. Ou seja, não houvera uma tentativa de assassínio, e sim um tombo do candidato, que se esbardalhara ao vivo quiçá por razões de velhice.
A segunda reacção ao atentado foi a distracção. Um jornal proclamava: “Tiros interrompem comício de Trump”, talvez para sugerir que, como de resto é natural, os campónios que o apoiam desataram a disparar à toa depois de demasiadas cervejas, “hot dogs” e sol na moleirinha.
A terceira reacção, que se prolongou por dias, foi a conspiração. Evidentemente, tudo aquilo fora encenado. Só um idiota não percebia o óbvio, leia-se que o atirador estava mancomunado com a campanha de Trump para ferir este de raspão e ser morto de seguida. A Trump bastou desviar a cabeça um instante antes do tiro inicial, de modo a evitar maçadas ligeiramente mais críticas como um projéctil no crânio.
A quarta reacção, que surgiu em simultâneo e desacordo com a anterior, foi a sinceridade. Nas “redes sociais”, milhares de anónimos opositores de Trump e políticos menores lamentaram o que milhares de conhecidos opositores de Trump e políticos maiores não tiveram o descaramento de lamentar: o falhanço do atirador. Vi – ou “visualizei”, para usar o vocábulo erudito – diversas filmagens de “millennials” histéricos ou em lágrimas por Trump ter escapado, mas a propensão dos “millennials” para guinchar e chorar sob qualquer pretexto levou-me a desvalorizar o facto.
A quinta reacção foi o desespero. Desconsolados com a ineficácia pública das reacções precedentes, inúmeros comentadores resolveram admitir implicitamente o atentado, embora para o desvalorizar. Para tais sumidades, o importante não é que alguém tenha ficado a dois centímetros de expor a massa encefálica de Trump. O importante, e grave, é o inevitável “aproveitamento”, ou a “exploração” do “incidente”. Essa gente convictamente acha que os prováveis ganhos eleitorais de um quase homicídio são o problema em toda a história. É uma gente recomendável.
A sexta, a sétima, a oitava, a nona e a enésima reacções foram livres. Frustrado, cada comentador decidiu engendrar a própria maneira de lidar com o atentado contra Trump sem prejuízo da profunda aversão a Trump e aos “deploráveis” que votam em Trump. Ouvi muitas teses engraçadas. A minha preferida saiu do génio de uma senhora que, salvo o erro na NBC, equiparou o sucedido na Pensilvânia à bravura de Biden, entretanto afectado pela Covid e as movimentações do sr. Obama. Se os republicanos exaltam a coragem com que Trump enfrentou umas simples balas, também é obrigatório exaltar a valentia demonstrada pelo actual presidente perante o monstruoso vírus.
Isto na América. Em Portugal, o prémio para a melhor alucinação vai para um tal Filipe Vasconcelos Romão, o qual na RTP perpetrou o pensamento que, a bem da clareza de raciocínio, cito com rigor: “O que costuma ocorrer é que, quando no caso sucede algo que prejudica, atira-se, acaba por se proceder a uma espécie de reflexo em que se procura acusar o outro justamente de aquilo que são as práticas comuns e habituais que levam nesse campo político”. Nas palavras do meu remoto professor de Química, a água cristalina é turva perto disto. Tradução hesitante: Trump levou um balázio porque os líderes democratas passam a vida a ser alvejados pelos adversários.
O sr. Romão é um exemplo, colhido por felicidade no YouTube. Imagino os Romãos que perdi. A verdade é que, por uma vez, senti pena de não aceder a canais televisivos. Na ressaca do atentado/encenação/aproveitamento, percebi por vias indirectas que os estúdios portugueses se encheram, em presença ou nos quadradinhos do Zoom, de populares e obscuríssimos especialistas na raiva incomensurável a Trump, ou vítimas do que a medicina informal designa por Síndrome do Transtorno de Trump, que está longe de constituir uma maleita exclusivamente americana.
Recorro ao Prontuário Terapêutico, ou Wikipédia, para definir a doença: as reacções irracionais suscitadas por Trump, independentemente do que quer que Trump diga ou faça. Trump é tão atacado por sofrer um atentado quanto seria se ele cometesse um atentado. Eu, que considero Trump um pantomineiro arrogante e pouco escrupuloso, consigo apreciar o que aconteceu de positivo na sua presidência. Os pacientes da Síndrome não conseguem. Nem sabem que é possível avaliar a criatura com um vestígio, ainda que mínimo, de ponderação, ou sem se habilitarem a babar uma camisa de forças. É uma visão cartesiana: Trump existe, logo eles não pensam. Não pensam, mas estrebucham, furiosos, à mera menção do nome, que põem uns graus de malvadez acima de Hitler e Belzebu. Não é uma enfermidade inteiramente nova, e já se revelara com Reagan e os Bush. Porém, a estirpe Trump é devastadora.
Lá e cá, a Síndrome abateu-se com força e enfiou a ortodoxia política e “mediática” nos cuidados intensivos, ou no lodaçal em que chapinham, a dissertar acerca de “união”, “tolerância” e “inclusividade” (desculpem) enquanto transpiram ódio. O ódio, e os exercícios de desumanização associados, podem convencer um taradinho a subir ao telhado com uma espingarda e procurar a glória. Até Novembro, podem convencer dois ou três.