Friendship is a knowledge acquired by free men. And there is no freedom without intelligence or without mutual understanding” – Albert Camus

Ou há moralidade ou comem todos”, parece ser esta a mais recente fórmula argumentativa que resume o que por estes dias tem vindo a ser repetido, até à náusea e sob diferentes fórmulas verbais, um pouco por todos os fóruns onde essa magna questão, conhecida pomposamente por “futuro da Direita”, vai ganhando forma. A discussão ganhou nova vida e particular afetividade, porquanto nos Açores, um resultado eleitoral que aproxima o Parlamento regional a um albergue espanhol patrocinou uma coligação ampla que, a bem da alternância, juntou os trapinhos de cinco forças políticas, sociais-democratas, democratas-cristãos, monárquicos, saudosistas e liberais, formando um patchwork tão colorido que reduz a oposição local ao destronado PS, a um fragilizado BE, e ao PAN em representação unipessoal.

Para quem tenha memória, é difícil não sorrir com a solução encontrada, ainda que ela se traduza numa manta de retalhos com uma combinação visual, digamos, relativamente espampanante, sacrificando a coerência estética à necessidade de agasalho.

Vale a pena recordar que o domínio socialista nos Açores começou em 1996, numas eleições em que o PS saiu vitorioso, mas numa situação de empate em número de deputados com a então força dominante na Região, o PSD. Embora em segundo lugar, o PSD, se aliado ao CDS, teria base parlamentar suficiente para governar. Segundo Costa Neves, à época líder regional do PSD, tal coligação não terá tido sequência porquanto o então Presidente da República, Jorge Sampaio, acabou por segurar a formação de um governo PS, marcando o início daquela que viria a ser famosamente conhecida por “Dinastia César” ou “Cesarismo Insular”.

O nosso regime constitucional saído da Revolução de Abril optou por uma fórmula semipresidencial extensa, que foi sendo trabalhada e reforçada durante quarenta anos por uma série de alterações, mas sobretudo por consensos, equilíbrios, decisões, fixação de limites e contenções que, não resultando explicitamente das regras formais, se tornaram a sua extensão prática. Esta dimensão – a que os constitucionalistas chamam “constituição material” – foi dando consistência e coerência ao regime político, assegurando a sua sobrevivência. Até 2015, a prática constitucional assumiu como indesejável forçar maiorias parlamentares que obrigassem a consensos frágeis com as forças partidárias que, saídas da Revolução, aspiravam a um regime distinto daquele que foi consensualizado a ferros. Essas forças, todas elas situadas na extrema-esquerda, foram sendo acomodadas pelo regime democrático, a pulso e com firmeza, mas com elevado custo, expresso no adiamento das reformas de que o país necessitava, ou na aceitação de alguns “acidentes de percurso”, como crimes de sangue e ações terroristas.

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Ora, em 2015, António Costa decidiu que para dar corpo ao seu projeto político tinha chegado a hora de romper com o equilíbrio constitucional anterior, explorando uma fragilidade circunstancial que impedia que o Presidente dissolvesse a Assembleia da República, por estar em fim de mandato. Tendo sido a opção tomada formalmente, legitimada e acomodada pelo Regime, podemos hoje dizer, com solenidade, que António Costa “inovou do ponto de vista da prática constitucional”, não sem as necessárias consequências, pois abriu a porta para que hoje nenhum governo se sinta viável sem que se criem grandes frentes de suporte parlamentar, maioritárias, incentivando a criação de pequenos partidos que, mesmo com pouca expressão eleitoral, por força da aritmética, ganham um incentivo adicional que justifica a sua existência. Os custos políticos de tal decisão são hoje claros, bastando pensar na fatura ideológica e orçamental que literalmente foi necessário pagar para suportar a Geringonça ao longo destes últimos cinco anos. É este novo cenário que criou os incentivos para que emergissem forças como o Chega, Iniciativa Liberal e Aliança, que vieram mimeticamente e no quadro da procura ideológica reforçar uma oferta que à esquerda já estava preenchida, com o PCP, Bloco de Esquerda, PEV, Livre e PAN.

Se a receita açoriana encontrada por PSD-CDS-PPM-Chega-IL é a consequência natural deste emergente “semiparlamentarismo de pendor parlamentar”, inaugurado em 2015, e se ela é quase inevitável, pois é a única que permite uma desejável alternância de um poder que está nas mesmas mãos há 24 anos, ela não deixa de ter enormes fragilidades na forma como foi preparada e apresentada aos Portugueses. Para justificar a inclusão do Chega no albergue espanhol, os diversos líderes partidários e os que intelectualmente procuram alinhar na ideologia a solução criada produziram uma tal profusão de argumentos e mensagens disléxicas que qualquer pessoa minimamente sensata tende a ficar preocupada. É que se os motivos que justificam a coligação açoriana e sua profusão de cores são simples de explicar numa mera lógica de pragmatismo político, não se compreende a catarse e toda a afetividade que se lê, um pouco por aí, algo que deixa com vergonha alheia quem goste de se situar no centro e à direita, com serenidade e sem rasgar de vestes.

Desde a criação do Chega que todos os partidos do centro e direita têm sinalizado as suas enormes reservas em relação às fórmulas discursivas e soluções políticas defendidas por Ventura e os seus seguidores, várias delas, julgávamos muitos de nós, estarem já enterradas no grande jazigo ideológico que foi o século XX. Ora, justificar, em alguns casos da noite para o dia, a inclusão do Chega num acordo parlamentar, assinalando como argumento que Cuba não é livre, que na Coreia do Norte continuam a comer criancinhas e que Che Guevara era um assassino homofóbico, sendo verdades comprovadas só refutadas por avatares ou figuras erráticas no Twitter, não me parece ser uma argumentação sólida para explicar o ocorrido. A ideia de que “ou há moralidade, ou comem todos”, não é algo que seja atrativo para os que não se sentem arregimentados para guerrilhas próprias de um tempo que já acabou, e que só sobrevivem por náusea e mau entretenimento. Tão pouco me parece solução, a criação de barricadas, onde os que desconfiam das motivações do Chega são acusados das mais diversas aleivosias pelos que, de repente, viram a luz num discurso de direita carregado de esteroides e t-shirts cavadas. Há por isso muito a fazer se o que se pretende é criar uma Direita humanista e democrática, onde possam caber hipoteticamente todos, mas que sem prescindir das suas matrizes fundadoras, seja capaz de desbloquear a governação do país. Porque Portugal não precisa de uma direita que replique os maus exemplos da Geringonça.

Numa das suas múltiplas crónicas, compilada na obra “Actuelles”, o francês Albert Camus, prémio Nobel da literatura, ensaísta, romancista, dramaturgo, quiçá filósofo, escrevia: “(…) Não há vida sem diálogo. Mas o diálogo foi, hoje, na maior parte do mundo, substituído pela polémica. O século XX é o século da polémica e do insulto. Eles ocupam, entre as nações e os indivíduos, e mesmo ao nível das disciplinas outrora desinteressadas, o lugar que tradicionalmente cabia ao diálogo refletido. Dia e noite, milhares de vozes, empenhadas, cada uma por seu lado, num tumultuoso monólogo, lançam sobre os povos uma torrente de palavras mistificadoras, de ataques, de defesas, de exaltações. Mas qual é o mecanismo da polémica? Consiste em considerar o adversário como inimigo, por conseguinte a simplificá-lo e a recusar vê-lo. Aquele que insulto, já não sei de que cor são os seus olhos, ou se acaso sorri, e como o faz. Tornados quase cegos por obra e graça da polémica, já não vivemos entre os homens, mas num mundo de sombras (…)”. Arrumado por conveniência da época em que viveu, algures na esquerda, o pensamento e a vida de Camus têm vindo a despertar o interesse daqueles que gostam de despir a sua obra das agruras e das contingências do tempo em que foi produzida. Autor de pensamento complexo, Camus foi sempre muito mais claro a definir os seus limites e recusas, do que sustentado na defesa das suas teses mais polémicas. Ora, as suas leituras perspicazes e a sua crítica lúcida das realidades políticas e modas ideológicas do seu tempo, do desenvolvimento de muitos pensadores e movimentos políticos ao longo da história, merecem ser recordadas. Camus pagou o preço de ser intransigente na recusa, quer dos fascismos de Hitler ou Franco, quer do marxismo e do comunismo real.

Grande promotor do absurdo como corrente de pensamento humanista, Camus definiu-o como “a nossa exigência de clareza diante de um mundo opaco”. Vivemos hoje num ambiente de profunda transformação, onde as ruturas epistemológicas provocadas pela revolução digital nos obrigam a um olhar crítico, novo, equidistante face às ideias e cartilhas que nos trouxeram até aqui. Escrevia Camus, nos limites do seu contexto, que “os nossos esforços para saber são movidos por uma nostalgia pela unidade”, havendo, porém, um “hiato inevitável entre o que imaginamos que sabemos e o que realmente sabemos”. É sabido que tentar interpretar a realidade é um exercício exigente, que convida ao fechamento e a uma recuperação preguiçosa de soluções de cartilha: ocorre que hoje elas já não nos servem como resposta aos desafios da sociedade digital. Se a história do pensamento humano é caracterizada pelos “seus sucessivos arrependimentos e impotências”, evoluindo a Humanidade na digestão das suas conquistas, mas também dos seus sucessivos fracassos, nunca como hoje a profecia de Camus, sobre “a impossibilidade do conhecimento”, com as suas indesejáveis consequências, ameaçou estar certa. Por isso, mais do que discutir os méritos e deméritos de ideologias que tiveram o seu lugar na História e no Tempo, é hora de sermos capazes de construir fórmulas de pensamento que respondam aos desafios dos nossos tempos, na certeza de que a única coisa que verdadeiramente é certa nos cenários de reforçada incerteza que acompanham as Revoluções, são os valores humanistas e o respeito pela liberdade e pela pessoa.