1 Introdução: só se fala dele e ele – Putin – faz medo por mais de uma razão. E se o momento não permite a uma militante do mundo ocidental nem distrações nem demissões, apesar disso – ou por causa disso? –. são outras coisas que deixo hoje aqui. Menos ameaçadoras, mais amáveis. A gravidade dos dias confundi-las-á com distrações. Não são. Evoco gente que vale a pena ser evocada. Parecer-lhes-á desconcertante e talvez seja. Mesmo assim.
2 Há coisas que as vezes vêm ter connosco de forma tão harmoniosa, que damos connosco subitamente disponíveis para acreditar num qualquer milagre agenciado não se sabe bem como ou por quais deuses. Foi o caso. Claro que qualquer coisa que não fossem os embaraços e vexames que nos causam os políticos seria naturalmente um quase prodígio. Mas posso ser mais comedida e mesmo prosaica : afinal é de livros e palcos e vozes que trata este texto. Claro que o ter-me naturalmente ocorrido o substantivo prodígio releva também do regresso a vida, á rua, aos foyers, ao cheiro a papel das livrarias, ás tertúlias, ao ruído de vozes, ao cinema, ao som da cidade. Mas não foi só isso.
3 Podia começar por falar em coincidências mas nunca me decidi sobre se as há ou não, o tema permanece-me inconclusivo, mas deve haver: na mesma semana, no mesmo local, pude assistir entre o pasmo e a glória, a duas performances inesquecíveis. E o traço de união entre elas não era só o Teatro da Trindade onde ambas ocorreram: o que as tornou únicas foi o génio. O imenso talento de Diogo Infante que estreava peça, e sete dias depois, a voz de Camané que ali interpretava ao vivo o seu último disco, “Horas Vazias”. Mas que horas afinal tão, tão cheias… Sim, é verdade que gosto de contar. É ainda mais verdade que gosto de gostar e depois dizer que gostei mas como reagir doutra maneira com eles os dois ali à mão de semear, Diogo e Camané, diante dos nossos sentidos maravilhados? Dizer que gostei é pouco. E terrivelmente injusto: ficaria aquém.
4 Diogo Infante é genialmente versátil. Já o vimos fazer tudo e tudo melhor que bem. Com o seu talento polifónico entrou em cena com a leveza de um bailarino e a subtileza de um pescador, no registo da alta comédia de Noel Coward. O que como bem sabem os que sabem, não é fácil. Encenador e protagonista (em cena quase permanentemente) Diogo Infante fez do palco um carrocel de onde personagens, casos, imprevistos e sentimentos entram e saiem com vertigem. O texto é o nó górdio de onde tudo parte para depois, envolto no verbo só aparentemente frívolo de Noel Coward, esvoaçar por ali, entre a seriedade, o sorriso e a ambiguidade. Le tout, com consideráveis doses de elegância e bom gosto. Outros tempos eram aqueles. Diogo Infante brilha e faz brilhar sobretudo o friso feminino (Ana Brito e Cunha, Rita Salema, Patricia Tavares, Gabriela Barros, magnificas).
Uma delícia que o peso destes dias transforma numa espécie de recompensa.
5 Camané é o melhor. O melhor a cantar, a entoar, a modular, a perceber o que é o fado, a meter-se dentro dele, fado e intérprete fundidos. Ẽ também o melhor na sua tão própria forma de exigência: no modo como elege poetas e letristas, escolhe músicos e compositores, seleciona fados, estreia outros. “Já reparou como o Camané é tão parecido com a Amália?” perguntava-me Ruy Vieira Nery que também nasceu com o fado no sangue:
“Para além da maravilhosa voz de ambos, há a mesma sensibilidade, a mesma intuição. E a simplicidade, a exigência, a delicadeza…”
Há sim, há. A mesmíssima.
Já aqui louvei Camané, já aqui o entrevistei, estou a repetir-me, dirá ol leitor. Repito-me porém porque -sorte minha – não tenho outro remédio: Camané é superlativo. Diogo também. E são-no em português. Na mesma semana dois superlativos, Deo Gratias!
Um grande regresso à “normalidade” (como “eles” dizem).
6 Já não tinha notícia há décadas: que seria feito dele? Ainda fotografaria? Mantinha-se em Lisboa?
Descobri-o numa notícia aqui mesmo: António Homem Cardoso publicava um livro. Interessei-me, os seus créditos, a fama, a aura de notável retratista abonam o seu talento: são ”500 Retratos da Minha Vida” (editora By the Book, prefácio de António Barreto) que nos falam de quem somos, da história que vivemos, do tempo que passou. Num preto e branco imperial há rostos e mãos, corpos, olhares, gestos, atitudes, “cenografias”, que são a melhor assinatura dos retratados, em páginas de excelentíssima qualidade retratística e técnica – papel, impressão, edição.
O autor avisa-nos que vamos “encontrar alguns grandes retratos, outros assim-assim. Outros nem por isso. Tal como a vida, o retratista tem dias bons, maus e péssimos”.
A minha nula competência na matéria não me fez o mesmo aviso. Sorvi o livro. E encontrei-lhe outro mérito: fazia falta uma obra assim. São precisos grandes frescos sobre as sociedades, mostrá-las através de uma lente inspirada é uma outra forma de as dar a ver.
Há músicos, artistas, intelectuais, escritores, pintores, actores, arquitectos, jornalistas, empresários, políticos, escritores. Papas e bispos, fadistas e vinhateiros. Académicos e revolucionários. Do antigo regime e da democracia. Há muita gente. Há sobretudo Portugal.
7 E porque os últimos são os primeiros, eis um português de primeira. Deveria talvez dizer um sobredotado mas há quem lide mal com grandes adjectivos ou logo desconfie ( do sobredotado e de mim). E no entanto, de uma coisa estou certa: o médico António José Barros Veloso é isso mesmo que é.
Percebeu cedo que a curiosidade é um motor potentíssimo e foi-o mantendo sempre a trabalhar. Vindo através dela a desaguar em caminhos improváveis num clínico que fizera do exercício da medicina a sua vocação primordial: o jazz – é um excelente pianista que toca não poucas vezes no Hot Club e por outros lugares onde o reclamam; a azulejaria, paixão mais tardia na qual se tornou reputado especialista, com obra publicada; já aposentado mas como se ainda tivesse trinta anos e de certa forma teve-os sempre, abraçou a História da Ciência onde tem obra publicada, animada pela mesma curiosidade, a mesma verve, a mesma energia. Apetece perguntar se num ser humano podem coabitar várias vocações? Olhando para ele, sim: soube tratar bem esse dom. E lendo a sua história através do diálogo mantido em recente livro com Margarida Almeida Bastos (“António José Barros Veloso, Uma Vida, Vários Mundos”, By the Book) percebe-se tudo isso ainda melhor: ele e os seus dons.
8 Epílogo: Após ter invadido e desmembrado um país independente Putin anunciou que “está disponível para dialogar”, mas “sem comprometer os interesses do país”. Fala quem pode e tem poder. Mais: à hora a que escrevo (quarta-feira à tarde), Putin aceita até um “diálogo honesto” para “resolver problemas pela via diplomática”. Pela via… quê?
Uma prova de longa duração para o Ocidente. Tensa e intensa.