Subi à montanha, para respirar um pouco de ar puro. Não subi realmente, subi em imaginação. Para mal dos meus pecados, estou pregado ao Porto. Mas a imaginação sempre pode fazer alguma coisa. Neste caso, ela foi-me inspirada pela sua velha ajudante, e, por vezes, inimiga, a memória. Mais precisamente, pela memória de um livro lido na adolescência, que, sem nunca verdadeiramente o ter relido, sempre me acompanhou. Não é um livro imenso, mas é um livro com qualidades. E deve ter sido um livro certo lido na altura certa.

O seu autor é o escritor beat Jack Kerouac e chama-se The Dharma Bums (na tradução portuguesa, a que li, Os vagabundos da verdade). A parte de que me lembro melhor é aquela em que Ray Smith (o próprio Kerouac) vive solitário, durante um Verão, como guarda florestal numa montanha dos Estados Unidos. Bebe e escreve poemas influenciados pelo budismo zen, a versão japonesa do budismo chan dos chineses, ele mesmo, como se sabe, originado pelo budismo indiano. A influência budista vem-lhe do seu amigo Japhy Ryder. Japhy Ryder não é senão o grande poeta beat Gary Snyder, igualmente tradutor de uma das joias da poesia clássica chinesa, Montanha Fria, de Han Shan, o lendário poeta chinês do século IX (Han shan significa precisamente, em chinês, “montanha fria”, o nome do poeta confunde-se com o do objecto da sua poesia). A Montanha Fria descreve a vida de um eremita na montanha, com as suas dificuldades e a sua felicidade. Nada tem a ver com a célebre Ascensão ao Monte Ventoso, de Petrarca, que é, antes de tudo, a narração de um processo espiritual – e, por isso, o seu valor em nada fica diminuído pelo facto de alguma erudição contemporânea notar que é pouco verosímil que alguma fez Petrarca tenha de facto procedido à ascensão física do monte. Na Montanha Fria há, de forma muito vivida, frio e pedras que servem de almofadas à cabeça e toda a espécie de problemas do dia-a-dia – e a felicidade que acompanha tudo isso. Não é surpreendente que The Dharma Bums seja dedicado a Han Shan.

A mesma espécie de felicidade que a memória me guardou de The Dharma Bums encontrei-a em traduções de uma grande antologia da poesia da dinastia Tang (618-907), organizada originalmente na China no século XVIII. Os poetas são muitos e cada um, sem dúvida, tem a sua maneira particular. Mas sente-se em quase todos eles o perfume dos grandes espaços e das longas viagens (a sua boa recepção pela poesia americana deve-se em parte a isso). Montanhas e rios estão em todo o lado, e não é acaso que a palavra chinesa para “paisagem”, shanshui, se tenha vindo a construir sobre a reunião de montanhas e rios. Nesses poemas, muitas vezes, fala-se de encontros e despedidas de velhos amigos de cabelos brancos, em tempos de paz e em tempos de guerra. Encontram-se bebendo vinho e despedem-se, como se fosse a última vez, bebendo vinho.

E há, é claro, as palavras: nuvens brancas, lua, rios, montanhas, gansos selvagens, flores, árvores, Primavera e outras estações do ano. Nos poetas, as palavras comuns são transformadas, digamos assim, em objectos segundos. Elas mantêm, sem dúvida, uma ligação com o sentido comum. Quando se lê “rio”, há obviamente a referência ao que normalmente entendemos por “rio”, mas a palavra adquire um significado cada vez próprio em cada poeta, que não devemos confundir com a sua transformação em símbolo nem com o resultado de associações (subjectivas) ou de implicações (objectivas). Trata-se antes de uma operação poética que visa permitir a contemplação das palavras num plano que o seu uso corrente não permite, a criação de um objecto de contemplação. O que vale para cada poeta individualmente, vale também para as tradições poéticas, e é o caso da tradição poética da dinastia Tang.

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Claro que não saber chinês é um obstáculo ao maior prazer da leitura. Tanto mais que, como notam os especialistas, a gramática da poesia clássica chinesa é aberta e mínima, propiciando várias possibilidades de tradução. Há, no entanto, uma solução para compensar um pouco essa falha original: é ler o maior número possível de traduções disponíveis em línguas que, melhor ou pior, se dominem, a começar pelas versões quase inaugurais de Ezra Pound, Arthur Walley e Amy Lowell. O chamado “imagismo” foi quase feito para receber esta poesia. Alguma coisa dessa experiência nos encaminhará para a verdade poética, pelo menos idealmente.

Três poetas sobressaem nessa Antologia: Tu Fu, Wang Wei e Li Po. Curiosamente, cada um deles encarna uma das três grandes correntes filosóficas da China: o confucianismo, o budismo chan e o taoísmo, respectivamente. De uma certa maneira, tanto o confucianismo como o budismo da dinastia Tang apresentam uma forte influência taoista, como se pode ver em Tu Fu e Wang Wei, se bem que ela não seja tão explícita como em Li Po. Mas talvez não se deva dar uma tão grande importância a isso. Por mais apaixonante que seja a grande filosofia chinesa, e é apaixonante, ela não alcança o elevado nível de certas escolas, nomeadamente budistas, da filosofia indiana, cujas discussões no plano da filosofia da mente, da epistemologia, da lógica e da metafísica podem perfeitamente dialogar com a filosofia contemporânea.

Em contrapartida, a poesia e a pintura chinesas abrem-nos um mundo inteiro, fundado em categorias inteiramente diversas das nossas. No outro dia, li um crítico e tradutor de poesia chinesa, David Hinton, que nota algo de fundamental: o modo como a presença e a ausência convivem harmoniosamente na poesia e na pintura clássicas chinesas. A presença, o mundo das mil coisas, aparece na poesia como emergindo de uma ausência geradora à qual pertence e harmoniza-se com esta. Esta participa daquela e aquele participa desta. É algo que se sente palpavelmente na Antologia Tang. E não menos na pintura: é ver como as grandes montanhas são pintadas, massas enormes delicadamente traçadas que subtilmente se dissolvem no nada. Na nossa tradição – fico-me pela poesia -, reclama-se a presença absoluta e incondicional: a ausência representa o insuportável. Leia-se a poesia de amor, ou as discussões filosóficas do amor, que se constroem por inteiro na exigência da presença e na insuportável dor da ausência. Aparentemente, nada menos chinês. Nada menos próximo à “reticência emotiva” da poesia chinesa, para falar como o grande sinólogo A. C. Graham.

Dos três poetas que citei, o mais facilmente amável é Li Po. De facto, é extraordinariamente amável e perfeitamente milagroso. Só conhecia dele os poemas adaptados por Mahler na Canção da Terra. Mas as imagens não tinham formado a minha imaginação – a música toma (contra a sua vontade?) conta de tudo. Nos últimos tempos, na minha montanha imaginária, tenho-o lido sem parar e as imagens vieram para ficar. Há poemas sobre as raparigas que se escondem entre as flores de lótus, simulando pudor e rindo-se de quem passa e poemas sobre desastres de guerra em que os cavalos, já sem cavaleiro, relincham com terror dirigindo o seu olhar ao céu e os abutres retiram as entranhas dos soldados mortos e dependuram-nas nos ramos das árvores. E há um dos poemas que têm por título Bebendo sozinho sob a lua(suponho que são quatro) que já li pelo menos em oito versões diferentes, e algo me diz que não vou ficar por aqui.

Pus-me mesmo a imaginar uma versão do poema que integrasse a morte de Li Po. A lenda diz que ele morreu afogado saltando da sua barca num rio para tentar abraçar o reflexo da lua. O mais provável, é claro, é que tenha caído bêbado da barca. De resto, num dos vários poemas que o seu grande amigo Tu Fu, também ele um grande bebedor, sobre ele escreveu, ele aparece-lhe em sonhos, lamentando-se que os rios e os lagos são feitos de ventos e vagas e que a barca se pode facilmente afundar sob o seu ímpeto. De qualquer maneira, se quisermos manter uma versão poética da sua morte, talvez que o melhor seja adaptar um poema do próprio em que ele fala de macacos brancos no Outono que saltam para o rio para na água beberem a lua. Não sei porquê, mas beber a lua no rio parece-me melhor que abraçar a lua.

A versão selvagem e muito infiel do poema de Li Po seria assim: Sentei-me, sozinho, na montanha, junto às flores. Peguei no jarro. Olhei para a lua. A lua não bebe. Olhei para a minha sombra. A minha sombra não bebe. Bebi. Bebi e bebi com todos os que comigo não estavam. A minha sombra agitou-se. Que maneiras estranhas tem a minha sombra! A lua agitou-se. Que modos esquisitos tem a lua! Olhei para o rio. O rio era silencioso e propício. A minha sombra caminhava na sua direcção. Segui-a. No centro do rio estava, imóvel, a lua. Aproximei-me dela para a beber na água. Afoguei-me. Ó minha sombra, conhecias o meu caminho melhor do que eu! Já viajaste por todo o rio das estrelas. E eu também, sem o saber. Agora nada nos distingue.

A vida na montanha e nos rios tem os seus perigos. Kerouac, de resto, num outro livro seu, Desolation Angels, faz um retrato menos feliz da sua temporada como guarda florestal. Mas às vezes é preciso correr riscos, mesmo imaginários. A felicidade e o risco andam de mãos dadas. E as imagens de The Dharma Bums continuam, na minha cabeça, a viver como uma memória feliz. Sobretudo, os trezentos poemas da Antologia Tang, revelando um universo que, na minha ignorância, inteiramente desconhecia, recordam algo de essencial: a poesia cresce de mil maneiras e cada maneira verdadeiramente nova alarga o nosso entendimento do que ela é e pode ser. O que, parecendo que não, ajuda a dar um lugar mais pequenino às desgraças do dia-a-dia, que tendem a aumentar, deixando-nos “tão profundamente divididos, tão angustiantemente separados” (Li Po), mostrando a feia carantonha dos tempos, que tudo nos assusta, e dando-nos a ver a beleza humana da grandeza.