Os professores estão em luta, as famílias desesperam, os alunos exultam e o Governo estremece, mas tudo isto é apenas a febre que indicia um conjunto de patologias da escola que estão muito para além da espuma informativa e do folclore em que algumas greves de professores se transformaram.

Só os mal-informados, mal-esclarecidos ou mal-intencionados podem duvidar da justeza de algumas reivindicações da classe docente, embora o seu modelo dominante de sindicalismo tenha vindo a gerar enormes antipatias e até a desvalorizar, em parte, a própria classe.

A primeira grande questão, que constitui um dos problemas mais complexos do ponto de vista da governação, mas que é verdadeiramente imoral, é a não contagem do tempo integral de serviço e, mesmo que tenham existido constrangimentos salariais, é intolerável que um trabalhador preste um serviço e o tempo não lhe seja reconhecido, seja em funções públicas, seja em empresas privadas. Um Estado que injeta milhares de milhões em empresas públicas e em bancos privados não pode desculpar-se com constrangimentos financeiros para se eximir a respeitar os seus compromissos com os que o servem.

O mal-estar docente, que se agravou na primeira década deste século, quando se começou a desenhar com mais clareza um quadro de desrespeito institucional pela classe, não mais deixou de se aprofundar com esta perda de tempo de serviço, traduzido num sentimento de injustiça que, caso não seja corrigido, ficará como uma chaga pronta a reabrir a cada momento mais complexo do ponto de vista laboral.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A segunda questão, muito penalizadora e mediática são as situações de “casa às costas”, no entanto, ao contrário da primeira, a responsabilidade desta disfuncionalidade laboral é também do ministério, obviamente, mas com a coautoria militante dos sindicatos. Por razões puramente políticas e de conservadorismo tem-se mantido um sistema retrógrado de colocação dos docentes, assente num concurso nacional onde o que conta são as notas e a antiguidade. Como qualquer pessoa compreende, não se pode defender um concurso nacional assente naqueles critérios e, simultaneamente, que todos fiquem próximos do local de residência.

Este modelo foi sempre irracional e tem décadas, entretanto o mundo mudou, o país mudou, a formação de professores mudou, o sistema de gestão das escolas mudou, mas o concurso nacional mantém-se como excrescência do passado e como uma vaca sagrada que os sindicatos adoram como verdadeira divindade organizacional.

Agora anuncia-se que o sistema vai mudar, mas duvida-se que haja coragem para transformar o paradigma do sistema de ensino, ou seja, desnacionalizá-lo e regionalizá-lo. Aliás, a regionalização das colocações e o aumento da autonomia das escolas são duas medidas fundamentais para adaptar o sistema à realidade destes tempos.

Alguma empresa recruta hoje colaboradores com base na nota de um curso ou na antiguidade? Porque não se aplica a todos os níveis de ensino o sistema de recrutamento do superior, com as adaptações necessárias? Não é perfeito, mas é muito melhor do que uma seleção nacional apenas com base em classificações.

Algum trabalhador de uma empresa, que até pode ser recrutado no estrangeiro, se queixa que anda com a casa às costas? Se a opção é do próprio, protesta com que razoabilidade? Enquanto se mantiver o concurso nacional o problema subsistirá pois a quadratura do círculo é impossível de concretizar.

A autonomia das escolas, entendida como um conjunto de competências acrescidas de gestão assentes na capacidade técnico-científica das suas direções e órgãos pedagógicos, é uma promessa antiga nunca cumprida, mas imprescindível para melhorar a operacionalidade do sistema e a qualidade de ensino e que não dispensa a possibilidade de recrutamento do pessoal de administração e serviços e dos docentes.

Esta questão está intimamente relacionada com a necessidades de existirem órgãos de coordenação territorializados, de nível concelhio ou ao nível das Comunidades Intermunicipais, que contribuam para uma melhor gestão e rentabilização dos recursos humanos e materiais.

Face a esta evidência, internacionalmente reconhecida, não se compreende a objeção dos sindicatos contra a municipalização e a regionalização e o zelo dos vários ministros a fugirem do tema e a negarem com veemência qualquer propósito de proceder no sentido correto.

Outras questões fraturantes têm a ver com a burocracia causadora de entropia, em que os docentes vivem mergulhados, com a degradação das condições de trabalho, fruto das políticas erradas de gestão de recursos humanos, desde há muito típicas do ministério, das profundíssimas mudanças ocorridas nas escolas como resultado do incremento, nem sempre racional, da participação das famílias e dos fenómenos de disfuncionalidade comportamental dos alunos e perda de autoridade dos docentes.

Este caldo institucional tóxico envenena o ambiente de muitas escolas e transforma-as em locais de confronto, relegando a aprendizagem para uma espécie de subproduto de má qualidade, resultante de um caderno de encargos onde os indicadores e as estatísticas se sobrepõem ao essencial, formar cidadãos. Se a situação não se alterar radicalmente o país vai continuar atónito a ver a escola estatal esboroar-se até que alguém tenha a coragem necessária para mudar o que tem de ser mudado.