Existem três marcos importantes na criação da mitologia em torno de Pedro Nuno Santos, de “jovem turco” a líder socialista. Novembro de 2011, quando se opôs à “abstenção violenta” de António José Seguro ao primeiro Orçamento do Estado de Pedro Passos Coelho. Abril de 2012, quando se demitiu da vice-presidência da bancada parlamentar socialista em rutura com o mesmo Seguro. E janeiro de 2013, momento em que apoiou ativamente a proto-candidatura de António Costa à liderança do PS, que acabou por não sair do papel porque este desistiu à 25.ª hora, frustrando muitos que o apoiavam.

O rumo da história acabaria por colocar Costa no poder, reconciliar os dois (até nova rutura, pelo menos) e consolidar o percurso de Pedro Nuno Santos, de secretário de Estado da ‘geringonça’ a ministro da TAP, de morto político a secretário-geral socialista, de predestinado a derrotado por Montenegro e líder da oposição. António José Seguro, esse, acabou reduzido a umas intervenções públicas pontuais, afastado da política ativa, quase esquecido por uma larga fatia do PS. Hoje, doze anos depois, Pedro Nuno Santos, que ganhou dimensão precisamente nesse período, arrisca-se a emular o mesmo homem que combateu politicamente.

Manda o rigor que se diga que as comparações são sempre falíveis, que o contexto era outro e o PS também. O país estava intervencionado pela troika, uma troika que o PS chamou e com quem negociou o memorando de entendimento, o Orçamento do Estado para 2012 era brutalmente regressivo e Pedro Passos Coelho tinha uma maioria no Parlamento que Luís Montenegro hoje não tem. Os socialistas tinham a responsabilidade política pelo resultado de seis anos de José Sócrates, uma mancha difícil de limpar, mas não eram instrumentais para a aprovação do documento. Aritmeticamente não dependia deles.

Mesmo assim, e sob o argumento da “responsabilidade” e em nome da “estabilidade” do país, Seguro optou pela “abstenção violenta” que tanto irritou uma ala do PS. Doze anos depois, Pedro Nuno Santos, o mesmo que se rebelou contra António José Seguro e liderou, a partir do Parlamento, os “jovens turcos” que iriam desgastar a então liderança socialista, repete os mesmos argumentos, enterra o “praticamente impossível”, propõe-se a salvar um Orçamento em que manifesta e assumidamente não acredita, e decide fazê-lo sem ser absolutamente imprescindível para as contas – os 50 deputados de André Ventura poderiam (e podem) desempenhar esse papel. A confirmar-se, será uma questão de escolha e não de imperativa necessidade movida pela ideia de salvação nacional.

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Não é possível saber o que diria Pedro Nuno, o “jovem turco” de 2012, a Pedro Nuno, “líder do PS” de 2024. Mas é fácil fazer uma pesquisa no Google e fazer essa longa viagem no tempo de pouco mais de quatro meses. Não é exatamente arqueologia política. A 10 de março de 2024, Pedro Nuno afirmou o seguinte: “A direita que não conte com o PS para governar. Não somos nós que vamos suportar um governo de direita. O nosso projeto para o país não é compatível. Não vamos passar a aderir ao programa que combatemos e contestámos na campanha e que continuamos a achar que é errado para o país. Não é a nós que têm de pedir para suportar um Governo. Sabemos que a pressão virá, mas vamo-nos aguentar firmes.”

A firmeza de Pedro Nuno não resistiu à prova do tempo — ainda que esse tempo tenham sido apenas 135 dias. E não é fácil descortinar o que se alterou de forma estrutural e em menos de cinco meses para explicar a transfiguração de Pedro Nuno Santos. Houve umas eleições europeias que o PS ganhou, há sondagens que dão algum conforto aos socialistas – e que retiram pressão a uma liderança que somava desaires eleitorais –, e há a constatação do óbvio: mesmo que viesse a ganhar eleições antecipadas resultantes de uma crise orçamental e política, com os dados que hoje existem, não haveria uma maioria à esquerda que lhe permitisse governar.

Pedro Nuno Santos pode jurar que continua a ser violentamente contra as ideias de Montenegro, pode dizer que não tem medo de eleições e alegar que age apenas e só em nome dos interesses do país. Mas há um problema nesse exercício: o país não mudou assim tanto em quatro meses e uns pózinhos. Não há nada de substantivo que justifique tamanha mudança de atitude. O primeiro-ministro continua a chamar-se Luís Filipe Montenegro, o Governo continua a ser composto pelos mesmos PSD e CDS, e o caminho tenebroso que a AD tem para o país, segundo Pedro Nuno versão “Março de 2024”, continua a ser o mesmo quatro meses depois. Para o mesmo efeito, aliás, o Chega continua a ter os mesmos 50 deputados que permitiriam salvar a AD e dispensar a ajuda do PS.

Os eleitores, simpatizantes e militantes socialistas escolherão que versão de Pedro Nuno Santos preferem, se o de 2012, se o de março de 2024 ou se o de julho de 2024. Mas há um dado irrefutável: a estratégia do líder socialista mudou radicalmente. Não se podem defender posições diametralmente opostas com a mesmíssima convicção sem que, pelo menos, exista um esclarecimento fundamentado, um racional orientador, uma explicação com cabeça, tronco e membros.

Também houve outra coisa que mudou. Em 2012, não faltaram vozes críticas de António José Seguro. Pedro Nuno Santos, claro, mas também Pedro Silva Pereira, João Galamba ou Duarte Cordeiro, por exemplo, manifestaram oposição frontal à decisão de Seguro. Desta vez, no entanto, não houve uma única alma socialista a dizer o óbvio e a exigir um esclarecimento. Se viabilizar o próximo Orçamento do Estado, depois de tudo o que disse sobre essa mera possibilidade teórica, Pedro Nuno Santos vai estar a engolir um monumental sapo.

Não havendo ninguém com peso político a dizer isto mesmo, sobra uma de três hipóteses não necessariamente excludentes. Ou falta pensamento crítico no Largo do Rato; ou falta gente com vontade de fazer oposição interna (legítima, frontal e democrática) a Pedro Nuno; ou estão todos apostados em deixá-lo queimar em lume brando porque o lugar de líder da oposição não interessa muito neste momento. António José Seguro não teve tanta sorte.