1. Estes dias convocaram-nos de novo, brutalmente, para o terrorismo, o seu poder, as suas armadilhas, os seus desafios. Não foi só o Charlie Hebdo, a liberdade de expressão e os cartoonistas e companheiros massacrados. Não foram só os polícias assassinados, um deles, muçulmano francês, executado à queima-roupa por terroristas muçulmanos franceses, diante dos nossos olhos. Não foi só a recaída anti-semita do assalto ao supermercado judeu da Place de Vincennes e o sangue que aí correu. Não foram só os 17 mortos e os feridos de Paris.
Pela mesma altura, milícias do Boko Haram – cujo líder já proclamou um Califado Islâmico – tomavam no nordeste da Nigéria, junto ao Lago Chade, a cidade de Baga, onde dizimaram 2.000 mil habitantes, civis, entre velhos, homens, mulheres e crianças. Leu bem: duas mil pessoas! No dia seguinte, a notícia foi uma menina de 10 anos usada como bombista suicida por terroristas Boko Haram, na mesma região, para matar 20 pessoas e ferir outras 18, num mercado em Maiduguri. Leu bem: uma menina de 10 anos feita bomba ambulante! E, no dia a seguir, outro atentado por dois suicidas da Frente al-Nusra, jihadistas sírios ligados à Al-Qaeda, fez 9 mortos e 36 feridos num café no norte do Líbano.
Tudo isto em quatro dias: de quarta-feira a sábado.
2. Há alguns anos que ponho em evidência a necessidade de, no mundo inteiro, mantermos continuamente presente a consciência social do terrorismo e dos seus males; e, por outro lado, mobilizarmos activamente o espírito universal para a definitiva ilegitimação moral do terrorismo.
Não é um perigo que possamos pôr de lado ou para trás.
O terrorismo é, hoje, uma ameaça permanente e global. Traiçoeira e cobarde, golpeia onde menos se espera. Numa igreja, mesquita, ou sinagoga. Num mercado, num café, numa piscina, num bar de hotel. Num avião, navio, ou comboio, no autocarro, no metro. Numa escola ou numa creche, numa biblioteca, universidade, museu, teatro ou cinema. Numa redacção de jornal, num supermercado, numa esquadra de polícia, num edifício de escritórios. Contra as torres de Nova Iorque ou sobre um bairro em Bombaim. Num quartel ou num hospital. Apanha-nos sempre pelas costas. A trabalhar, a passear, a descansar, a comprar, a rezar, a estudar, a correr, a ler, a viajar, a almoçar, a jantar, a namorar. É um punhal velhaco.
Mas, apesar dos anos e décadas, da polícia, e dos serviços de informação, da experiência, das crónicas, do saber, das leis, e das penas, e das medidas de segurança, só é possível ele permanecer ainda a este nível de ameaça – até crescente – porque, na verdade, nós ainda não ilegitimámos globalmente o terrorismo.
O terrorismo foi importado como arma de luta política, à boleia de nacionalismos, crenças, ideologias, ambições políticas, em modo extremista, fanático. Aqui ou ali, nalgum grau, tem sempre havido alguém pronto a desculpá-lo ou a explicá-lo por causa da “injustiça”, ou da “opressão”, ou da “revolta”, ou da “indignação”, ou da “pobreza”, ou da “austeridade”, ou da “marginalização”, ou da “periferia”, ou de “agravos históricos”. E, não raro, em cada um dos campos políticos ou religiosos em causa, os moderados protegem nalguma medida os seus radicais ou acabam por tornar-se nos seus primeiros cativos. Têm medo ou mesmo uma simpatia difusa. As cumplicidades por afinidades de pseudo-causas colam-se. E as cumplicidades financeiras vêm logo a seguir. As mais das vezes são tácitas; mas todos as percebem ou tentam estabelecer. E o terrorismo ganha, então, outra arma: além do medo, a paranoia.
A batalha pela absoluta ilegitimação moral do terrorismo é, por isso, crucial. É imperativo. É imperioso fazê-lo de forma colectiva, repetida, massiva. Não, não, não. Basta!
Só venceremos quando erradicarmos por completo o terrorismo dos métodos de luta possíveis e tornarmos o terrorista um ser sem espaço e sem mercado, sem padrinhos e sem refúgio.
Neste horror de Paris, quem duvida que, em muitas televisões pelo mundo fora, os irmãos Kouachi e o Coulibaly, os três assassinos, caçadores e caçados, foram seguidos como heróis por alguns olhos ávidos e guardados como exemplo nalgum coração carregado de ódio e de fanatismo? Não pode ser.
3. As extraordinárias manifestações de Paris, que ecoaram pela França inteira e por todo o mundo no mesmo espírito e idênticos sinais, confirmam o caminho certo: o poder agregador das vítimas; a evidência e a memória a ilegitimizar radicalmente o terror; a fortíssima união diante da absurda brutalidade dos factos, superando até divisões que se diriam irremediáveis.
Em 11 de Março de 2004, deputado ao Parlamento Europeu, propus a adopção do Dia Europeu em Memória das Vítimas do Terrorismo. A ideia era exactamente aquela: cerimónias anuais, em toda a Europa, que nos recordem, nos chamem e nos reúnam, para a contínua ilegitimação deste mal do tempo. A data proposta era 11 de Setembro. Mas a coincidência desse dia em Estrasburgo com os trágicos atentados de Atocha levou-me a alterar oralmente o texto e ficou o 11 de Março – o que o Conselho Europeu, reunido, poucos dias depois, em Cimeira Anti-Terrorista no fim do mês, veio a consagrar. Nos primeiros anos, a celebração do Dia Europeu em Memória das Vítimas do Terrorismo ainda teve alguma solenidade; depois, foi-se atenuando e, a pouco e pouco, caiu numa rotina burocrática. Os terroristas é que não há meio de se burocratizarem.
Enquanto fui deputado europeu, até 2009, pugnei sempre pela maior evidência das cerimónias e por que estas ecoassem em todas as capitais e parlamentos dos Estados-membros. Com altos e baixos – os altos sobretudo em Madrid e, às vezes, Bruxelas – o quadro foi sempre insatisfatório e tendendo para o descafeinado. Procurei prosseguir ainda esses esforços a partir da Assembleia da República; houve algum eco, mas sempre aquém do necessário. É verdade o provérbio: só se chora diante do leite derramado. Quando já não vale a pena.
4. A recomendação que fiz aprovar no Parlamento Europeu em 2004 visou, aliás, mais longe: conseguir também a declaração, no âmbito das Nações Unidas, de um Dia Mundial em Memória das Vítimas do Terrorismo, na data havida como mais conveniente. Até hoje, aquela que pareceu mais próxima de consenso terá sido 19 de Agosto, o dia em que, em 2003, Sérgio Vieira de Mello e outros 21 funcionários da ONU, em missão, morreram em Bagdad num atentado bombista da Al-Qaeda.
Uma proposta chegou a entrar, em 2011, em Nova Iorque, depois de anteriormente adoptada em Genebra, mas acabaria por ficar pelo caminho. Creio que o esforço da diplomacia europeia nunca terá sido grande, nem sequer por parte da diplomacia portuguesa, apesar da Resolução da Assembleia da República n.º 6/2012, aprovada sem votos contra e publicada no “Diário da República”. Lá está: os terroristas são mais eficientes.
Agora, as novas cimeiras anti-terrorismo já anunciadas para Bruxelas e Washington, a 12 e 18 de Fevereiro próximos, permitem renovar a esperança de que esse ponto da agenda finalmente possa cumprir-se. Infelizmente, tantos têm sido os actos terroristas cometidos por todo o mundo com um ror de vítimas trucidadas, que não faltam dias… Se viesse a ser escolhido e fixado o 19 de Agosto – ou, pelo eco recente, este trágico 7 de Janeiro de agora – ou outra data simbólica de amplo consenso internacional, para estabelecer o Dia Mundial em Memória das Vítimas do Terrorismo, o passo seria enorme na blindagem moral da consciência universal contra o terror. Basta! Nunca mais!
Um dia em que evocaríamos os turistas de Bali e de Casablanca, os autocarros de Telavive e o Chocolate Cafe de Sydney, os hotéis de Beirute, Bombaim e Jacarta, o metro de Londres e os comboios de Atocha, as torres de Nova Iorque, o teatro de Moscovo e as ruas de Bagdad, os milhares de vítimas da Nigéria, do Mali, do Quénia, da Somália, de Israel, do Egipto, da Líbia, do Paquistão, do Afeganistão, do Iraque e da Síria, as memórias dolorosas da ETA e do IRA, Munique e o Charlie Hebdo. Um dia em que, todos os anos, em todas as capitais, com a mesma união e o mesmo sentimento de Paris, lembraríamos, sem excepção, todas as vítimas ainda desse ano. Para dizer não, em uníssono, todos os anos. Até acabar. E acabará.
Preto, branco ou amarelo, índio ou mulato, oriental e ocidental, do norte e do sul, muçulmano ou judeu, ateu ou cristão, budista ou hindu, crente em tudo ou em coisa nenhuma, de esquerda ou de direita, europeu ou africano, americano ou asiático, letrado ou ignorante, camponês ou dirigente, músico ou escritor, operário ou médico, artista ou sem jeito algum, sábio ou tosco, jovem e velho, homem e mulher – temos que ter uma forma, convocada pela comunidade universal, para, todos os anos, todos juntos, dizermos NÃO.
De o dizermos nos nossos países. De o dizermos nos nossos continentes. E de o dizermos, a uma só voz, no mundo inteiro. E acabará.
5. O terrorismo, digo-o há muito tempo, é a maior ameaça contemporânea aos direitos humanos. Ameaça-nos logo que entramos num qualquer aeroporto. Segue pelas medidas de segurança que cada vez mais nos apertam, nos cercam, nos vigiam, nos espiam, nos escutam e nos condicionam. E culmina na generalização do medo; e, às vezes, na brutalidade que nos golpeia como uma flecha ou que mata e fere mesmo ao nosso lado.
Há que o erradicar e pôr-lhe termo. Só persistindo no caminho da sua intransigente ilegitimação moral, sem concessões, ganharemos. E acabará.