No outro dia, liguei a televisão de tarde e apanhei uma telenovela. Mais precisamente, apanhei o pequeno-almoço de uma “família rica” da telenovela. Sabem como é? Uma mesa grande, com café, croissants, compotas, iogurtes, o imprescindível jarro com laranjada (laranjada a sério, de laranjas muito espremidinhas) servido por uma criada vestida a rigor e fruta, muita fruta, uma quantidade impressionante de fruta diversa e exótica que ocupa uma boa parte da mesa. Não sei em que obscura parte de Portugal aqueles ricos habitavam, mas a mesa do pequeno-almoço parecia vir directamente do Rio de Janeiro ou de um turbante de Carmen Miranda.

A primeira vez que travei conhecimento com pequenos-almoços de ricos foi, há várias décadas, através da família Ewing, na série Dallas. O patriarca Jock e a mulher, Miss Ellie, presidiam ao início dos conflitos quotidianos entre o irmão mau (JR) e o irmão bonzinho (Bobby) e à manifestação dos estados de alma das respectivas esposas, Sue Ellen e Pamela. Mas os vistosos hábitos alimentares daqueles saudosos magnatas texanos do petróleo rapidamente foram superados em qualidade e quantidade pelos dos ricos das telenovelas portuguesas. Esses sim, sabem o que é a qualidade, e os produtores do espectáculo televisivo não perdem, desde o seu já longínquo início, a oportunidade de no-lo mostrar diariamente, e mais do que uma vez por episódio, dependendo da quantidade de famílias ricas que entram em cada telenovela. Atendendo ao número de telenovelas que estreiam todos os anos, um jovem de carácter empreendedor bem que poderia pensar em formar uma startup destinada a fornecer àqueles “conteúdos televisivos” todos os elementos decisivos para a cena ritual dos pequenos-almoços. Amealhava depressa um sólido pecúlio, aposto.

Falta-me certamente qualquer autoridade sociológica para determinar com rigor qual a verdadeira composição do pequeno-almoço dos nossos ricos, mas nunca consegui evitar o sentimento que àquela representação televisiva pouco corresponde na realidade. Dito de outra maneira: aquilo é puramente imaginário, sem equivalência nos costumes efectivos das pessoas. Não ponho em causa, é claro, a legitimidade da invenção. Apesar de tudo, os ricos devem-se comportar, desde que acordam, como ricos, é o mínimo que se lhes exige. Um rico de barba mal feita que se limite a um café e a um cigarro é praticamente uma ofensa para a nação. Nos Balcãs, onde reinam os mais arcaicos costumes, ainda vá que vá: agora em Portugal, não. Mas algo me diz que essa invenção dos pequenos-almoços, para ter tido o sucesso e a longevidade que indiscutivelmente adquiriu, deve ter alguma base de apoio na maneira como uma boa parte da sociedade portuguesa se quer ver a si mesma, ou, pior: se vê a si mesma. Os pequenos-almoços devem ser a metáfora de alguma coisa. A irrealidade e o postiço daquilo devem poder-nos dizer algo sobre a nossa sociedade. Não falo dos ricos: falo de uma classe de portugueses que exprime os sentimentos gerais dos proprietários do regime, particularmente dos actuais.

Tomemos um exemplo: a conversa de sociedade muito frequente sobre Passos Coelho quando era primeiro-ministro. Ela era pelo menos dupla. Primeiro, vertente neorealista, ele queria fazer recuar os pobres aos tempos dos Esteiros de Soeiro Pereira Gomes (um livro, de resto, interessante a vários títulos, e muito legível). Não se contam as coisas que se disseram em relação a este aspecto nem os excessos de má-fé e delírio necessários para as dizer. Mas falar disso fica para outra vez. O que interessa aqui é a outra conversa que a acompanhava. Lembram-se? Como ele se vestia, a cultura que ignorava, o lugar onde vivia, onde passava férias, os costumes que tinha (Cavaco Silva, obviamente, padecia de males em tudo idênticos). Tudo era horrível, tudo chocava e ofendia os elevados critérios estéticos e culturais com que boa parte da oposição a Passos se alimentava. Sócrates era idolatrado, inclusive por muitos daqueles que agora o renegam ou sobre ele guardam um prudente silêncio e que, mistério dos mistérios, tudo ignoravam sobre as suas aparentes malfeitorias, por ser o exacto oposto disso. Esse sim, vestia-se bem (enfim…), tinha bons carros (enfim…), vivia em boas casas (enfim…) e passava as férias nos lugares certos. Costa, hoje em dia, sem o provincianismo gritante do “bom gosto” do outro e com maior discrição, exibe igualmente uma “boa pinta”. E quem diz Costa diz também um grande número das pessoas que compõem a facção mais esquerdista do actual PS. Querem ser aquilo que admiram e o que admiram não difere grandemente de uma adaptação aos modernos tempos do “chic a valer” do memorável Dâmaso Salcede, com o qual, sem o saber, têm muito em comum.

Uma boa parte da esquerda, e da direita que a acompanha na dedicação à distinção social, aprecia isso de forma imoderada. Quer ter boa pinta e deseja um poder que exiba as virtudes em que julga ser excelsa e que permita eventualmente até, com uma pequena ajudinha, aprimorá-las. Quer naturalmente o equivalente na vida dos pequenos-almoços dos ricos das telenovelas. Com a boa-consciência permitida pelo amor paralelo à justiça social e um desvelo nunca apagado por regimes, como o cubano, em que imaginariamente não existe fosso entre ricos e pobres, onde os pequenos-almoços são todos iguais. A esquerda-caviar começa o dia como esquerda-abacaxi. E mostra quotidianamente, através da boa pinta, o tão apregoado “virar da página” da austeridade.

Resta que o “fim da austeridade”, para a maioria das pessoas, é tão postiço como os pequenos-almoços dos ricos das telenovelas. A ficção até pode durar algum tempo, mas, no que respeita ao seu imaginário reflexo na realidade, o seu declínio é inexorável. E isso, infinitamente mais do que a parolice do “chic a valer”, que em si não traz grande mal ao mundo, é que é péssimo. A puerilidade desenvencilhada do espectáculo que nos vendem não resistirá, pelas razões que gente competente nos mostra todos os dias, ao mínimo abanão. No mundo real não há pequenos-almoços grátis.

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