É preciso dizer sempre aquilo que se vê; sobretudo, e isso é o mais difícil, é preciso ver sempre aquilo que se vê.
Le Corbusier, arquiteto, designer e urbanista
Todos sabemos que em anos de eleições autárquicas as cidades e vilas do país passam por sucessivas operações de cosmética. Muitos dos autarcas que querem fazer boa figura e ser reeleitos guardam-se para o fim dos mandatos e, no derradeiro tempo útil que têm antes de voltarem a ser escrutinados pelos seus munícipes, desatam a fazer obras que se vejam. Muitas obras e muito rápidas.
Nem sempre são as mais necessárias nem as mais urgentes, mas são sempre as mais vistosas. Acontece em todo o país e Lisboa não é exceção. De repente, esta cidade está cheia de flores e canteiros, jardins e árvores podadas, ciclovias e estradas arranjadas.
O alcatrão das saídas e entradas da cidade foi renovado e o chão finalmente alisado. Dá gosto entrar e sair de Lisboa em vésperas de eleições autárquicas. Ali para os lados do aeroporto, a estrada está uma beleza. Lisinha, lisinha, como há uma eternidade não se via. Onde existiam buracos ou até verdadeiras crateras, rachas e desvios, agora há uma via gloriosa por onde os carros deslizam como se fosse seda.
Nas ruas, avenidas e artérias principais de Lisboa tudo brilha e rebrilha por fora, mas se nos descuidamos e damos uma curva mais para dentro, voltamos a cair nos buracos, tropeçamos nos mesmos altos e baixos e continuamos a subir e descer as colinas da cidade como se estivéssemos em picadas africanas.
Dou três exemplos: no Príncipe Real, lugar de referência e spot invariavelmente visitado pelos turistas, temos uma via principal razoavelmente bem arranjada, mas se descemos a Rua do Século e viramos para a Travessa do Abarracamento de Peniche, ou para a Eduardo Coelho, damos connosco aos saltos, sem podermos evitar o pior de um asfalto há muito arruinado. O contraste é aflitivo, sobretudo porque estamos a falar do coração da cidade e continuamos a estar no perímetro privilegiado de circulação de turistas.
Para quem mora na zona, mas sobretudo para as pessoas mais frágeis e doentes, percorrer estas ruas é um risco. Chega a ser uma impossibilidade física. Fiz esta picada há um par de dias com duas senhoras de 90 anos dentro do carro, ambas a precisar de bengalas e uma delas ainda a convalescer de uma operação delicada, e posso garantir que foi um tormento. Aliás, as ruas mais acidentadas e mais maltratadas de Lisboa são um verdadeiro calvário quando é preciso transportar doentes. Falo por experiência própria, por serem incontáveis as vezes em que fui nas ambulâncias do INEM, a acompanhar pai e mãe, dolorosamente conduzidos por estradas irregulares, em péssimo estado, mas às quais ninguém presta atenção.
Outro exemplo miserável em pleno centro da capital é a Rua das Taipas. Note-se que a parte visível desta rua foi arranjada a tempo das eleições, mas a parte que fica mais afastada dos olhares continua uma lástima. Arranjaram o alcatrão e taparam os buracos até a rua dar a volta por baixo do jardim-miradouro de São Pedro de Alcântara, mas mal a rua desaparece da vista voltam os buracos, os inconcebíveis altos e baixos, os paralelepípedos irregulares ou completamente fora do sítio. E nas curvas e contracurvas que damos até chegarmos à Avenida da Liberdade, tudo continua em mau estado e a precisar de conserto imediato.
Já que falei na Avenida da Liberdade, junto o terceiro exemplo: a Rua das Pretas. Inenarrável, o estado desta rua que sobe e desce, dando uma laçada pelo Campo dos Mártires da Pátria. Não há direito nem é concebível que a capital de um país (e uma das capitais europeias do turismo), que pretende estar à altura do estatuto “Capital Verde 2021”, descuide as suas vias de circulação ao ponto de atingirem um estado de degradação extrema e de perigo máximo. Falo de ruas perpendiculares às grandes avenidas centrais, mas não só.
Dei apenas estes três exemplos por serem todos muito centrais, mas infelizmente os exemplos sucedem-se, multiplicam-se e estendem-se ao longo de vias e artérias que vão do coração de Lisboa até às periferias. É um escândalo ver ruas arranjadas até meio e descuidadas a partir da primeira curva ou desvio em que “metem para dentro”.
Também é um escândalo ver prédios erguidos e em obras permanentes há décadas. No início da Avenida da República, do lado esquerdo de quem vai no sentido Saldanha/Campo Pequeno, há um colosso em esqueleto há anos sem fim. Numa cidade onde supostamente tudo é fiscalizado (nem tudo, bem sei) este monstro inacabado de betão continua ali a céu aberto, exposto na sua ruína antecipada aos olhos de todos, sem que ninguém exija uma fiscalização, dê uma boa justificação para o avançado estado de degradação ou, no limite, imponha um prazo para demolição.
A desigualdade de métodos usados na fiscalização de obras é acintosa e sabemos, por portas e travessas, marquises e coberturas, que existem de facto muitos pesos e muitas medidas no governo da cidade.
Aliás a desigualdade é ofensiva em muitos outros campos, não apenas no das obras e urbanismo. Atinge diretamente todos os cidadãos sempre que nos fazem sentir maltratados e discriminados. O exemplo mais recente e gritante de desigualdade entre cidadãos nacionais e estrangeiros chegou-nos do Porto, com os que supostamente vinham “em bolha’”para assistir à final da Liga dos Campeões, mas fizeram o que quiseram e, na volta, deixaram-nos fora do corredor verde para o Reino Unido.
Em Lisboa, a desigualdade entre turistas e lisboetas é ofensiva. Os turistas passeiam livremente pela cidade, todos sem máscara, enquanto nós, lisboetas, somos obrigados a usá-las. Experimentem caminhar pelas ruas do Chiado e da Baixa, subir ao Castelo ou descer para o rio para ver os turistas flanar sem qualquer preocupação relativamente ao contágio. Sinceramente, estou-me nas tintas para o facto de eles poderem apanhar Covid, mas indigna-me a possibilidade de nos encherem de variantes Delta e outras, sob o olhar passivo das autoridades municipais. A subserviência da CML aos turistas é vergonhosa e, para cúmulo, mostra que não aprendemos nada com a “bolha” furada dos turistas ingleses no Porto.
Não sei se é verdade que existem mais de 13 mil funcionários camarários, mas a confirmarem-se estes números, isso quer dizer que há um funcionário por cada 38 habitantes. Um luxo absurdo e uma estratégia bizarra e, afinal, completamente inoperacional ,pois os pequenos escândalos, as grandes omissões, as prepotências e os abusos de autoridade visíveis a olho nu abundam nesta cidade.
Já nem falo dos grandes escândalos, porque esses requerem meios próprios para serem investigados e julgados, falo apenas daquilo que nos toca viver e observar no dia-a-dia. De tudo o que é incompreensível, daninho ou indecoroso e acontece nas barbas das autoridades municipais.
Pergunto-me que estratégias, que medidas e contrapartidas terá Fernando Medina imposto ou exigido aos polícias de Lisboa e, em especial, aos agentes de segurança rodoviária, para que estes fechem os olhos perante as atrocidades diárias que se sucedem nas ruas, avenidas e passeios da cidade.
Há motas a circular nas ciclovias que atravessam passeios e, por isso mesmo, podem provocar graves acidentes nos peões que não esperam ser colhidos por um veículo que roda a mais de 60Km/hora; há as lendárias trotinetas a empatar o trânsito de um lado ao outro da cidade, montadas por sujeitos individuais ou por pares que acomodam os quatro pés, ao viés, no mesmo patim e circulam todos sem capacete, de phones nos ouvidos; há as bicicletas que não respeitam sinais de trânsito nem se detêm nos semáforos; há os skaters que competem em velocidade nas descidas das Amoreiras para o Marquês de Pombal (e outras) e há, claro, as motas e os carros, os elétricos e os autocarros, os táxis e os uber, que também precisam de circular. Ah, e voltaram os tuc-tucs, essa peste urbana de lentígrados que fazem gala em parar o trânsito ou fazê-lo rodar à sua velocidade.
Por haver tudo isto e por andarem quase todos na estrada ao mesmo tempo, os acidentes são uma realidade quotidiana. Ninguém fala deles (será que também houve uma ordem de silêncio?), mas eles acontecem e deixam sequelas. É legítimo perguntar quem é a maior vítima, quando o acidente é provocado pelo miúdo da trotineta, sem carta de condução nem capacete, que vai de phones postos, a ouvir música em altos berros e se lembra de ultrapassar sem olhar nem perceber que estava a ser ultrapassado.
Provavelmente, o miúdo fica com sequelas para a vida, mas os passageiros do carro também, e acidentes como este (muitas mortes e situações de invalidez) podiam e deviam ser evitados se as autoridades lhes prestassem a devida atenção. Se não fechassem os olhos a gente que pega em brinquedos e os leva para estradas onde só pode circular quem está encartado e respeita as regras de trânsito porque as conhece.
Ignorar estas situações é um escândalo e faz das autoridades municipais cúmplices de todo e qualquer acidente. Permitir o não uso de máscaras a turistas, quando é obrigatório para todos os cidadãos nacionais é uma vergonha e um sinal de subserviência. Ser conivente com obras que se eternizam, ou decretar meias obras “para inglês ver” é uma verdadeira ofensa.
Se juntarmos a estes pequenos e médios escândalos os outros, maiores e ainda mais graves, que são noticiados na imprensa nacional e internacional, compreendemos que não nos podemos calar. Comecei com uma citação de Corbusier, com a qual me identifico, e termino com outra, de André Gide, escritor e Nobel da Literatura, por estar na mesma sintonia: “Sou contra tudo aquilo que diminui o homem. Tudo aquilo que contribui para o tornar menos sábio, menos confiante ou menos vivo.”