1 Aqui há muitos anos, num programa semanal de entrevistas que então tinha na SIC, ouvi o meu convidado desse domingo dizer que “os Açores eram o sitio mais bonito de Portugal”. Ainda pensei uns segundos se era ou não, e evoquei o Douro, sugerindo um ex aequo entre ambos, mas Carlos César, que então governava o arquipélago, tinha razão: concordei em absoluto, os Açores eram o nosso melhor. E no fundo eu sabia-o, há décadas que uma ou duas vezes por ano era – e é – nosso poiso obrigatório, por vezes com aluguer de casa e tudo. Conheço (quase) bem as ilhas, interesso-me pelo que lá se passa, acompanho as governações, entrevistei João Bosco Mota Amaral, Vitor Cruz, Carlos César, Vasco Cordeiro. E ao contrário da dupla César/Cordeiro – um na sombra, outro ao sol – nunca acreditei que das recentes eleições saísse a maioria absoluta de que não só estavam certos, como estavam certos por se acharem os proprietários naturais das nove ilhas.
Mas não é preciso ter casa alugada nas ilhas para saber as coisas. Ou querer sabê-las (para além do “rendimento social de inserção” assegurado na freguesia de Rabo de Peixe). E por isso fui estranhando sempre a falta de informação real, concreta, que me chegava através da media continental que para lá fora cobrir a campanha eleitoral. O que houve foi o tratamento de grande vitória garantida ao PS e seus responsáveis, a subalternização do líder do PSD, uma curiosidade desinteressada pelos restantes, a obsessão com o Chega. Num cenário quase sempre marcado pela escassa ou pouca a informação sobre a vida política, social, económica dos Açores e das suas populações. Alguém referiu – por exemplo – com a ênfase necessária que a dívida pública experimentou uma evolução telúrica – 248 milhões de euros em 2000 e 2298 milhões de euros em 2020 (avaliação referente ao segundo trimestre deste ano)? A seguir, estranhei ainda mais os “days-after”. Onde esteve a procura da razão do resultado eleitoral da governação socialista? Que argumentos ou números nos mostraram que a contextualizassem? Quem se ocupou em analisar a partilha de responsabilidades políticas entre o Presidente do Governo Regional, Vasco Cordeiro, e Francisco César, actual líder parlamentar do PS e, no caso, director da campanha socialista nestas eleições?
Mais estranho ainda – as últimas estranhezas serão as primeiras – é a não indigitação de Vasco Cordeiro pelo Ministro da República: porquê? Não venceu ele a corrida? Não manda a Constituição que os que ganham sejam indigitados, formem governo e o levem ao parlamento? Então? Vasco Cordeiro não conseguiu formar governo? Não quis? Ou trocou o que acha ser um futuro político certo por um presente que seria obviamente incerto porque obrigado a uma coligação indesejada? Ou Lisboa… não deixou? E qual o papel de Marcelo nisto tudo? Que conversas tiveram e que combinações fizeram os que mandam no continente e nas ilhas? Em resumo: que se passou de tão subitamente diferente por aquele oceano e à revelia da Constituição? Desculpe o leitor tanta pergunta, mas mais opaco que isto não há. E no entanto… que eu saiba ou tenha visto alguém se ocupou da estranheza? E porquê? Ah, porque havia agenda mais premente e era aí que eu queria chegar hoje. A esse premente – deprimente: há quantas semanas nos bombardeiam, sarrazinam, atordoam e maçam com o Chega? Sem alcançar que ele agradece e talvez até se comova (ou mesmo contrate quem assim lhe dá votos de borla)
Não deixa alias de ser um caso de estudo – sociológico mas também político e com isto exibindo onde desceu a política e a media – que em jornais e écrans se opte editorialmente por deitar ácido sulfúrico sobre um partido com UM deputado UM – em vez de reflectir sobre a dimensão política e alcance eleitoral dessa opção: por este andar, um dia, o nosso actualmente desgraçado e mal entregue país acorda com Ventura a liderar o segundo ou terceiro partido nacional sem quase nada ter feito para isso. Por agora Ventura é o totobola que saiu ao PS: o mediático e incendiário alarido criado intencionalmente à sua volta permite tudo ao governo, das suas erráticas decisões e atrasadas medidas sanitárias aos abusos de poder do seu poder em queda. Mas daqui a uns meses, largos ou menos largos, já outro galo poderá cantar: Ventura, que cantará de galo (mais deprimente não há).
2 Uma novidade, pertenço a direita com apelido: incivilizada. Um grupo pouco inspirado de gente (da civilizada) escolheu esta altura para redigir uma carta à incivilizada. Já nem falo da redação sem propósito definidor ou em missiva tão esponjosa e sonsosa (de sonso). Também não evoco a particular dificuldade do momento – todos os dias empobrecemos, o país está sem economia, sem saúde, sem meios, futuro e sem timoneiros para cada um desses “sem” – que exigiria energia, responsabilidade e projecto. Falo que foi agora, quando o poder socialista se esboroa e o governo se desnorteia, agora que a centro e a direita tiveram uma vitória que tardava e estão em condições de arquitectar outras, agora que os sinais de outro ciclo político se começam a somar, agora é que ocorreu a uns escribas de redação atrapalhadiça, nos mostrarem duas coisas de que aliás suspeitávamos: ficam sem oxigénio se a esquerda não lhes der direito de cidade, de preferência amando-os e jantando fora com eles; que as suas convicções de “direita civilizada” passaram para décimo plano face à vital – mas oh quão eloquente – necessidade de ajustar contas ou com congressos mal sucedidos, ou com chefes que os preteriu, ou com medo de televisões que podem deixar de os convidar porque podem não ser “de confiança” e então há que mostrar que são. E mostrar que são, é mostrar serviço; e mostrar serviço é escrever uma carta como esta.
A direita incivilizada – segundo os respeitados padrões da esquerda – não fará – já não fez – o menor caso de nada disto obviamente. A vida continua, como se viu e vê. Para os signatários é que pode vir a correr menos bem, se se virem um dia levados a tocar a campainha da esquerda. Ou sem abrigo nalguma “terra de ninguém”. Consta ate que já há “arrependidos.” Tão pouco tempo depois, pouca sorte a deles.
3 Nunca fui próxima de Gonçalo Ribeiro Telles mas para considerar (muito) alguém não é preciso ser próximo, amigo, conhecido, ou intimo. O arquitecto Ribeiro Telles era alguém que valia a pena, como é o caso dos visionários avant la lettre, dos que se cruzaram com a utopia e deram corda ao aparentemente irrealizável. Sem nunca perder, norte nem valores. Encontrei-me muito com ele nas campanhas da AD e lembro-me de um patriota, civilizado e amável, empenhadíssimo com o seu pequeno PPM em levar –como levou – aquela carta a Garcia. De braço dado com Sá Carneiro, Freitas do Amaral, António Barreto, Medeiros Ferreira e Francisco Sousa Tavares. Que tempos santo Deus. Acreditávamos. E que gente! Todos bons, todos sérios. Não precisávamos de mais.